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terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Sá Carneiro - Aquela Noite


Eu estive lá nessa noite. O meu chefe estava de Piquete e nós tínhamos regressado de Cascais onde apresentáramos ao juiz de instrução um ladrão que fizeram vários assaltos na zona. Levámo-lo para a zona prisional e fomos ao Piquete dar contas do nosso serviço ao nosso chefe de Brigada. Ainda não deviam ser 20 horas. Convidámo-lo para um copo e ele respondeu-nos que não dava. Estava de serviço e com poucos homens já que era hora de jantar. Foi então que tocou o telefone preto. A bateria de telefones do Piquete era cinzenta. Menos aquele, linha directa aos serviços de urgência da PSP e da GNR. Quando tocava, era sinal de sarilho. Quando desligou percebemos que estava desconfiado. A notícia que chegava era grande demais para ser logo tomada a sério. Informava a Polícia do aeroporto que um avião caíra e que altas individualidades iam a bordo. Não dizia quem. Fosse como fosse, mandou avançar a tropa. Estava com o meu colega na rotunda do relógio quando pelos rádios das viaturas a central informava que se tratava do primeiro ministro e muito possivelmente do ministro da defesa. Sá Carneiro e Amaro da Costa, Naquele momento liguei o rádio normal e procurei notícias. O país ainda não sabia da tragédia. Recordo-me que as transmissões entre viaturas se calaram. O choque era grande demais e aquele silêncio era seguramente o tempo de todos os investigadores que se dirigiam para Camarate digerir uma notícia que lhes parecia impossível.
Chegámos ao mesmo tempo dos bombeiros que procuravam dominar as chamas do avião e encontrando gente desvairada com o susto, pois foram apanhadas de surpresa enquanto jantavam. Tornou-se uma das noites mais estranhas da minha vida. Nunca vira polícias a trabalhar de lágrimas nos olhos, nem bombeiros que soluçavam de mágoa e dor. Entretanto, chegavam as brigadas de minas e armadilhas, os peritos da aeronáutica civil, os homens dos homicídios e uma multidão que, entretanto, ao saber oficialmente da notícia correu ao local. Era tempo de eleições para as presidenciais. Tempo de emoções exacerbadas. Soares Carneiro contra Ramalho Eanes. Recordo-me de Eanes, prostrado, em choque, com a grandeza que se lhe reconhece, ali humilde e magoado com o desastre. De Eurico de Melo que não segurava as lágrimas. De muita gente da política e da vida pública que não queria acreditar na tragédia. Do Director Geral da PJ, do dr. Sombreireiro que ali mesmo fez a primeira autópsia dos cadáveres. Passava das três da manhã quando foram levados para o Instituo de Medicina Legal. As equipas técnicas ficaram no terreno e eu, que não me deitara na noite anterior perseguindo o ladrão de Cascais, não tinha tarefa e recolhi a casa exausto. Queria dormir e não conseguia. O choque vencia o cansaço acumulado e embora entre os polícias não houvesse grandes paixões partidárias, devido á própria função que inibia essas opções, partilhava a consciência quase unânime de que acabara de morrer um homem raro da política.Daqueles que servem em vez de se servir. Que se dedicam á causa pública sem condições. Que pelo seu país seriam capazes de viver. E de morrer.Um exemplo de cidadania que marcaria muita gente que ao longo de gerações se dedicou á vida pública. Nesta efémeride, vale a pena recordar esses valores essenciais desse homem valente, dedicado, apaixonado pelo seu povo. E hoje, tal como nessa noite, curvo-me respeitoso e rezo a S. Francisco por ele, por todos que com ele morreram e para que o seu exemplo ilustra e de dignidade cívica e política continue a ser herança de muitos. Para mim continua a ser com toda a certeza.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Evocação de um HOMEM - Vitor Gaspar


Vitor Gaspar era matemático. Professor. Quando o conheci, há nove,dez anos, era Presidente da Junta da Ribeira de Santarém, sendo um cidadão independente eleito pela CDU. Há um ano, faz precisamente hoje um ano, um enfarte fulminante arrebatou-o do mundo dos vivos.Tinha 44 anos e fui dolorosa testemunha dos seus últimos momentos de vida. Quando morreu, era vereador da Câmara de Santarém. Continuava a ser um vereador independente mas eleito nas listas do PSD. Tal como eu. A meu convite. Porque reconhecia nele a grandeza de autarca que não se encontra com facilidade por esse mundo do poder local. Um homem único, meu vizinho, que conheci antes das lides políticas, e que secundarizando as opções ideológicas, nos unia um profundo amor pelo conhecimento e pelo serviço público. Tornámo-nos amigos. Daqueles amigos com quem se partilham sonhos, obras, esperanças, derrotas, vitórias. Que nos respeitávamos nas diferenças e não temíamos a discussão frontal das nossas opções de vida. Ficarão gravadas na minha memória até ao último dia da minha existência as nossas infindáveis discussões sobre o seu infinito matemático e o meu infinito existencial, assim como o prazer pela música que partilhávamos, pelas viagens cúmplices pela vida, discutindo projectos e construindo outros. Já era chefe de divisão na autarquia de Santarém, a meu convite, quando organizou o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades. Um exemplo de entrega, serviço público, paixão á causa do povo que servia e do País. Passámos noites de insónia e de trabalho. Trabalhador incansável (uma ou outra das suas falsas viúvas que o choram em espectáculo, nunca aprenderam esse valor sagrado do trabalho que era o deus maior do Vitor, e ficaram-se na preguiça gemendo saudades mas ignorando exemplos), fraterno, íntegro, é um vazio imenso dentro de mim e na minha vida. 
Passado um ano evoco-o como o Amigo que nunca parte. Evoco esta memória de exemplaridade cívica, de serviço público, de dedicação ás suas gentes, de grandeza interior que os mais pequeninos que usam o poder em proveito próprio, por certo, hoje o lembram á força para dele se apropriarem após a sua morte. Por mais homenagens que lhe sejam feitas, não é recordando a sua morte que se exalta este HOMEM. É evocando a sua vida íntegra, solidária, vertical, valente e apaixonado pelo seu povo. O Homem que desprezava a pequenez e a mediocridade, que exaltava e não traía os valores da amizade, da solidariedade e da boa educação. Creio que muitos daqueles que o evocam não conhecem nada disto, não sabem o que é ser amigo, solidário e, até, bem educado. A fantochada do poder pelo poder, da ambição disfarçada de sorrisos ambíguos, as lágrimas do espectáculo que não chegam do coração, nada disto substitui a memória simples deste homem simples, fraterno e digno, que tive orgulho em conhecer, a felicidade de com ele ter trabalhado e  a alegria infinita de habitar o canto mais terno da minha memória onde guardo todos aqueles que sendo belos, bons e grandes, dedicaram a sua vida até ao limite aos outros, para bem de muitos e para memória exemplar de vindouros. Até sempre, Vitor!

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

O Poder e a Fraqueza

Deter o Poder, seja porque foi eleito, seja porque lhe foi delegado, não é condição de força, nem de autoridade. A força e a autoridade assentam na razão, nas convicções humanistas que servem que serve a causa pública. A força imposta e autoritária nunca é fonte de saber e de decisão. Nem de acção política com grandeza. É o maior sinal de fraqueza, o sinal do medo, a incompetência para servir. É servir-se. Servir os projectos pessoais e colocá-los ao serviço de ódios pessoais, de ambições pessoais, de retaliações pessoais. É o Poder ao serviço do egoísmo.Do exercício despótico do poder pessoal. É o verdadeiro lixo político que domina grande parte da vida pública do país. Que enoja pela desumanidade, que causa repulsa pela desumanidade, que provoca vómito pela mediocridade absoluta. Nenhum líder que jura servir pode transformar esse poder que lhe foi conferido para a discricionariedade, para o uso abusivo da arbitrariedade, para violar direitos de cidadania. Sobretudo quando se trata daqueles que servem a mesma causa comum que é o serviço á comunidade. Quando a política chega a este patamar de enxúndia, gordurosa e mediocre ilustra, não a política, mas a fraqueza de quem a usa para esconder a sua propria mediocridade. Dou um exemplo. Ontem dois quadros superiores foram despedidos. Não se lhe explicou porque o foram. Não se lhes uma explicação. Não se lhes deu tempo para reorganizarem as suas vidas. Gente com prestígio curricular e trabalho sério e honrado. Tratados como se fossem cães vadios. Decisão tão arbitraria quanto cruel. Que não fala sobre os despedidos. Diz tudo sobre quem brutalmente o decidiu sem olhar a condições de dignidade humana. É este o caminho de quem usa o Poder para o arbítrio e para a pesporrência. Os medíocres adoram estar rodeados de medíocres. Temem os homens superiores e com qualidade. E isto faz a grande diferença entre servir a Política com nobreza e alteridade ou torná-la no covil da maior miséria moral.Que Deus lhes perdoe a bestialidade.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

UMA NOVA AMBIÇÃO (III)

As grande rupturas culturais e civilizacionais (as verdadeiras revoluções no sentido de transformação profunda e radical) não se produzem com um estalar de dedos, nem com mais ou menos manifestações. Nem com mais ou menos reformas. Nem com mais ou menos austeridade. Tudo isto são expressões materiais e políticas de gestão problemas que afloram e necessitam de pensos e remédios, válvulas de escape e catarse colectiva, para reequilibrar formalmente os modelos em que se teima em acreditar. Aquilo a que hoje assistimos sob os mais intensos holofotes - acordos com a troyca, protestos, políticas orçamentais restritivas, indiferença ao desemprego, e por esta via ao valor do trabalho, ausência de investimento, e por esta via ao adiamento de adaptação aos novos tempos por parte dos empresários - fazem parte do mesmo puzzle de raciocínio e acção. Porém, deve dizer-se que são inegáveis os sinais de degradação e decadência em todas as áreas da produção de poder, seja ideológico, seja programático, seja nos domínios mais instrumentais como é o caso dos sindicatos, dos partidos, da associações de empresários, todos mais preocupados com o efémero (projectos para um, dois anos) do que estratégias de longo prazo. 
Veja-se como exemplo de degradação ideológica o Partido Comunista. Do seu léxico formal, das grandes narrativas públicas, há muito que saíram expressões como 'classe operária', 'camponeses pobres', os 'soldados e marinheiros'. Hoje domina e determina a narrativa a palavra 'trabalhadores', conceito genérico e abrangente, ambíguo, sem categorias identificadas, cabendo aí tudo e todos. Parece um problema menor mas não o é. É substancial. Quem ler os textos marxistas e leninistas, assim como as teses dos Congressos comunistas, sabe que a crença na revolução proletária, assenta na liderança da classe operária (cuja vanguarda é o Partido) na luta de classes contra o capital e os detentores do poder que o suporta. É certo que esta convicção não se perdeu no discurso comunista. O derrube do regime é a finalidade última da sua acção política com a emergência de uma sociedade socialista como existiu nos países de Leste. Porém, a deriva semântica, esconde a falência da crença e a incompreensão de uma realidade, corrigida hábilmente pelo conceito de 'trabalhadores'. A ruína dos campos e a dissolução de um denso tecido de camponeses por um lado, as alterações profundas nos processos de trabalho do operariado 'contaminados' pela democratização das novas tecnologias que os diferenciou, perdendo-se o sentido de massas de mão de obra explorada, no sentido que se vê relatado nos livros de Dickens, surgindo grupos cada vez maiores de 'aristocratas' , com forte poder de compra, graças ao domínio de competência técnicas que os arrancam ao domínio das 'vítimas da fome' e dos 'famélicos' da Terra.
Dou este exemplo mas poderíamos continuar por aí com os outros partidos. A social democracia do PSD ou o socialismo do PS não resistem á confrontação com os seus pressupostos ideológicos tendo em conta os seus discursos dominantes.
Não creio que estes anacronismos tenham a ver com o tal populismo simplista, analfabeto e vulgar que resulta da desorientação popular face ás diferentes narrativas e remete a política e os políticos para a singularidade insultuosa de que 'eles são todos iguais'. Seria mais rigoroso gritar 'Eles estão todos desorientados'. Sobretudo perderam o sentido essencial da política que é gerir o direito sagrado á Esperança. Quer a Situação quer a Oposição não conseguem construir um objectivo que entregue a necessidade e fomente o direito de acreditar que o futuro não é apenas sofrimento. Não é por maldade. É porque o mundo que representam, e sobre o qual modelam os discursos, já não é aquele que, na verdade, está aí a exigir uma Nova Ambição.
A Escola
O ranking das escolas e os becos sem saídas dos estudantes, o brutal desemprego de professores, o excesso de produção de 'doutores', a modelagem de um sistema de ensino que vive da massificação (e ainda bem) mas que é indiferente ao rigor, á competitvidade, a indiferença curricular com os grandes acontecimentos históricos que mudam os nossos quotidianos, o desprezo pelos valores de identidade nacional e cidadania, o afastamento dos pais (por auto e por hetero-exclusão) do processo educativo, faz alastrar esta mancha enorme de mão de obra pouco qualificada, sem destino prevísivel, apta a integrar o imenso exército de desempregados, pouco qualificada para os desafios ausentes das expectativas políticas geradas mas omnipresentes na realidade que vai fazer frente a esses alunos.
Talvez nunca tanto como hoje se trabalhe na escola. Tenho uma filha de 14 anos e sei a carga de trabalho que a sufoca. Para garantir competências diferenciadas dez a doze horas da sua vida estão agarradas á actividade escolar. 
Na idade da formação das identidades individuais é tão importante estudar a matéria académica como brincar, entendendo-se o brincar como processo de socialização e de construção psico-afectiva do mundo social da criança. Nunca como hoje, é necessário repensar a ideia de tempo livre, que as conhecidas e rotineiras 'AEC's' e outras propostas mais ou menos idênticas não privilegiam. E, sobretudo, como prioridade das prioridades é urgente definir um programa, ou vários programas educativos, onde quem nos governa tem de saber o que quer das nossas crianças daqui por cinco, dez anos, vinte anos, oferecendo escolhas de decisão para futuros adequados, longe desta produção, a raiar o imbecil, de professores, doutores e engenheiros que mergulham no desemprego mais desesperado. 
Qualquer reforma no ensino tem que obrigatóriamente inscrever expectativas de futuro produtivo. Seja em qual for a área de trabalho. Ou seja, valorizando o trabalho em vez de titulaturas. Entregando ao trabalho privilégios que provoquem o prazer de estudar e de trabalhar. Exaltando e protegendo o valor do trabalho como o verdadeiro motor da competitividade, do crescimento, da produção da riqueza. Julgo mesmo que todas as actividades relacionadas com o trabalho e a valorização das empresas deveriam ser afastadas das algemas fiscais, pois aqui reside o único caminho por onde Portugal pode sair desta complexa crise: formar com rigor, educar com rigor, adaptar o ensino e a educação ás exigências das revoluções invisiveis, á exigência de conhecimento dos direitos de cidadania articulados com os direitos da Terra, orientando políticas fiscais para quem tenha necessidade de limitar estes direitos. Julgo mesmo que o consumismo é a doença maior deste descontrolo. A ideologia do excesso inútil. Intervir fiscalmente nos consumos, tornando as receitas do Estado uma fonte de exemplaridade cívica e de justiça é um caminho que não pode deixar de ser caminhado. Mas sobre isto, falaremos depois.
(continua) 

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Uma Nova Ambição (II)

Urge alterar o programa do nosso futuro colectivo. As receitas que diariamente são sugeridas não correspondem aos grandes desafios que a História nos reserva. Como referi no artigo anterior, estamos a ser actores e testemunhas de um tempo único, eventualmente a vivermos a maior revolução depois da revolução industrial. Os profundos avanços e descobertas quer nos domínios da microbiologia e da bioquímica e, sobretudo, na área da engenharia de sistemas com rapidíssimas mutações no mundo da cibernética, têm provocado alterações radicais nas nossas formas de entender o mundo, as nossas relações com a Vida, com o nosso planeta, com os outros. A revolução informática alterou decisivamente as nossas coordenadas vitais: acelerou o tempo e encurtou o espaço. Durante séculos, muitos séculos (até ao sec. XIX) o tempo e o espaço tinham medidas subjectivas de interpretação do mundo marcadas  pela lentidão e pelo limite. Como sublinha Georges Duby, para o homem medieval, o tempo tinha a cadência dos sinais de oração emitidos pelo sino das igrejas e o espaço tinha como limite o seu horizonte visual. Este microcosmo fechado, imutável, lento marcou séculos de vida comum e, efectivamente, pesem os avanços decorrentes da multiplicação de viagens e de continentes, de caminhos marítimos e terrestres, só durante o séc. XIX, com a emergências das novas cidades, o incremento industrial que potenciou a máquina a vapor, o comboio e a via férrea, assim como a democratização do relógio, surgiram as mais decisivas rupturas nestas ideações essenciais para a interpretação do real. O tempo acelerou até á velocidade da hora e do minuto, o mundo começou a encurtar graças ás políticas de fomento no domínio dos transportes. Quem ler trechos de Eça de Queirós, quer no artigo o 'Francesismo' ou no In memoriam a Anthero de Quental, sob o título 'Um génio que era um Santo', perceberá como este grande prosador oitocentista captava estas alterações profundas quando descrevia a ânsia com que a academia coimbrã corria á estação do comboio á espera que chegassem as novas ideias que, ao tempo, traziam Hegel e Saint Simon, Proudhon e Comte, Littré e Hartmann, entre muitos.
Desde então, e apenas durante um século, não mais parou essa utopia transcendente, quase frenética, de aceleração do tempo e encurtamento do espaço. Em todos os domínios da actividade. Desde a produção industrial  (bem ilustrada no filme Os Tempos Modernos de Chaplin) até ás mais inusitadas formas de interagir com o quotidiano. O avião, o foguetão, a televisão, a panela de pressão, o micro-ondas, o 'fast-food', o novo urbanismo e as novas construções, o telemóvel, o ipad, a medicação, as técnicas médico-cirurgicas, os conceitos de saúde, de assistência, de educação têm vindo a ser formatados por forma a criar a ideia de que é possível controlar a Vida, segurá-la, vivê-la e assegurá-la, iludindo a omnipresença da Morte, negando-a, escondendo-a e, com esta estratégia, ignorando que é exactamente a consciência da finitude que forja as dimensões ética e moral onde assentam os pilares estruturantes da dignidade e da existência humana. O computador tornou-se no rei absoluto das nossas relações e memórias. Talvez não seja por acaso que o seu dispositivo de arquivamento se chama 'Memória ram' como se fosse o prolongamento da nossa própria memória ou, até, o seu substituto. A internet precipitou tudo. Deixou de haver espaço e tempo. Tudo se resume ao instante do 'enter' e ao sítio que queremos visitar. Esta realidade tão objectiva, tão dentro de nós e da nossa casa, dissimula o efeito perverso que este optimismo existencial encerra: é que na verdade tudo se resume a uma imagem, ou a uma sucessão de imagens, á construção de narrativas assentes em algoritmos que têm o seu eixo fundador num simples binário que fabrica representações simbólicas sobre a racionalidade, num quadro logicista, que não reproduz a dimensão afectiva ligada ao Viver e ao Morrer. Um computador pode representar o amor de milhares de formas mas jamais poderá amar. Jamais poderá rir ou chorar. É o nosso substituto omnipresente e a metáfora maior sobre as actuais narrativas políticas, económicas e sociais. Radicalmente lógicas, exacerbadamente racionalistas, efusivamente eruditas no planeamento e na estratégia, mas que não passam de uma imagem virtual sobre o mundo dos objectos, dos projetos, dos sonhos, dos desejos, da ternura, da amizade, do amor e, também, do ódio,da ira e de todas as pulsões que nos determinam enquanto seres humanos e cidadãos. Como sublinha Edgar Morin, somos muito mais entropia do que lei, somos muitos mais contradição do que norma. Somos muito mais, como escrevia António Botto, 'arquitectos do sonho e da ilusão', expectantes e actores que idealizam projectos e futuros, que geram filhos e os amam, crendo que o futuro vai para além do nosso próprio fim e que, por vias diferentes, procura antropologicamente a mesma coisa para os filhos: que possam ser felizes até ao dia e hora decisivo que desconhecemos mas que todos temos de viver. E de morrer. 
Perante esta constatação, percebendo por outro lado que os velhos paradigmas resultantes da revolução industrial, e das suas múltiplas consequências, estão a chegar ao fim, com restrições no consumo, com as alterações dos mitos do prazer e da riqueza, com o transtorno social resultante dos desastres económicos, pela incapacidade do discurso político para reactualizar o seu objecto novo e mais complexo, é necessária uma Nova Ambição que olhe sem preconceito e, sobretudo, sem medo o mundo que irrompe nesta nova Idade que surge perante os nossos olhos. Um Nova Ambição que é, antes do mais, um Novo Desafio ás nossas condutas e expectativas face á rápida pauperização, envelhecimento, ausência de caminhos em que mergulha o nosso país e o espaço europeu. Não deixa de ser paradoxal que no momento da maior explosão revolucionária dos últimos séculos, o espaço e o tempo em que vivemos seja caracterizado pela degradação e pela decadência. Pela reprodução de uma sociedade de velhos, pela multiplicação de lares e diminuição de escolas, pelo fecho de maternidades e alargamento de cemitérios. Não deixa de ser paradoxal que mesmo dentro do nosso país, existam vários países. Aquele em desmoronamento, em ruínas, quase desértico, que com raras excepções se transformou o Portugal rural, do interior, cheio de resquícios do país tardiamente medieval tão bem retratado por Vitorino Magalhães Godinho e o país litoral, metropolitano, competitivo, mas sem meta, transtornado e dilacerado pelas múltiplas crises que se cruzam no interior desta revolução, com faíscas de relâmpagos no meio de uma imensa trovoada.
Uma Nova Ambição que rompa com narrativas cansadas, cultivadoras do lugar comum, assente no impropério, no rodriguinho verbal e que tenha nesse casamento fundador da nossa existência, entre a razão e o afecto, o motor maior da construção de uma nova comunidade, de novos espaços e de novos tempos. Uma Nova Ambição que recupere a participação e a exaltação da cidadania culta , armada de novos saberes, retomada pela inquietação do conhecer, apostando na criatividade, na inteligência, na produção de afectos ( e de alegria) como forma sustentada de construir. Uma Nova Ambição liberta do espartilho egoísta, assente nos valores fundadores da prática democrática e na cultura democrática onde a procura da Igualdade excita e tolera a diferença; onde ser diferente não inibe o sentido de Fraternidade; onde colectivamente criadores, e libertos da sobranceria e da intolerância, poderemos sonhar, sonhos de carne e osso, com pernas e coração, que nos empurram para o ideário da Liberdade. Este mundo novo que se abre com esta nova idade necessita desta nova ambição. Que reconhece a impossibilidade de segurar o tempo. Que reconhece a impossibilidade de apreender todo o espaço globalizado em que vivemos. mas que os consegue interpretar á luz dos novos instrumentos de avaliação, inscritos numa memória de cidadania activa, que não desiste nem recusa a dimensão humanista da acção política, económica e social. 
(continua) 

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Uma Nova Ambição (I)

Não me sai da cabeça as comemorações do 5 de Outubro. No seu conjunto são um terrível metáfora sobre o estado do país. A bandeira hasteada em submissão, as cerimónias cercadas por grades, as ditas esquerdas (nas quais o PC não se fez representar) enfiadas num anfiteatro repetindo os lugares comuns de sempre, o primeiro ministro ausente no estrangeiro, a indiferença popular, fez com que este dia, que devia ser de comemoração, se tornasse numa liturgia de finados, sem energia, cabisbaixa, não cumprindo a sua função legitimadora e congregadora de vontades. Foi um velório na Câmara Municipal com as carpideiras aos gritos revolucionários numa outra sala com gente desorientada que contesta o governo e a única proposta, mais sonora que a oposição devolveu, foi a promessa que o 5 de Outubro vai voltar a ser feriado. Para quê? Pergunto eu, depois deste fiasco colectivo? Para aumentar a amargura e o desespero? Para alimentar a política do lugar comum, das fórmulas académicas, teoricamente eruditas, mas tão desastradas que empurram as populações para a fome, para o desemprego e para a miséria sem que haja um único sinal de investimento na economia? Para quê? Para que a 'rua' comande os passos, sem direcção política, sem objectivos de construção, sem um único caminho de esperança, transformando-nos num imenso grito de protesto, condicionando uma ou outra política, mas sem um plano, um objectivo positivo para o país? 
Aquilo que o 5 de Outubro sintetizou de forma perfeita foi a exibição do poder republicano numa fase avançada de decadência, aviltante para a memória dos seus maiores heróis (políticos, poetas, escritores, obreiros de todas as artes) e de desesperança para quem aqui vive, trabalha, educa os filhos e ama a sua terra sem conseguir dar um sentido mais amplo ás suas expectativas existenciais.Esta decadência não traz mais futuro que não seja mais decadência. Não traz esperança, o motor essencial da confiança nos homens e na Vida. Não traz alegria, o perfume decisivo para que os projectos ganhem força. Não traz nem mais investimento, nem mais trabalho, molas essenciais para projectar o futuro. Não traz mais nada a não ser lamentos, protestos, sementeiras de ódio e desprezo, lugares de histerismos e erros, onde as ruas e as praças são cada vez menos de quem procura viver e transformam em grades, polícias, separadores redutores da nossa vida comum. 
Uns acreditam na troyka. Outros acreditam que é contra a troyka. Muitos acham que esta perda de soberania serve especuladores sem escrúpulos, arruína (ainda mais) o país, outros consideram que é este empobrecimento rápido e brutal que nos vai mostrar as portas de Jerusalém Celeste.No fundo, a lógica dos prós e dos contra é a mesma. Tão idênticos nos apoios e nos protestos, no que respeita ao futuro, que nos leva a recordar Guerra Junqueiro, tão vazios, tão ocos, tão sem ideias, tão iguais com as duas metades do mesmo zero.
O que este 5 de Outubro revelou é que estamos num beco. A alternativa á miséria, é mais miséria. A alternativa para a desconfiança, é mais desconfiança. A pescadinha não solta o rabo da boca e este ciclo infernal não tem fim, ou pior, pode ter o mais desgraçado dos fins, diminuindo Portugal, humilhando-o, deixando-nos presos aos mais trágicos dos desesperos.
Ao longo da minha vida, passei por vários lugares do mundo e do trabalho. Os últimos sete anos, tinha 52 quando me iniciei nas actividades políticamente activas, à frente de uma autarquia à altura degradada e sem auto-estima, permitiu-me perceber muitos dos erros que se replicam no todo nacional, que ferem de morte a política central, que inibem novos olhares, novas abordagens, o medo a novos desafios, fora da lógica que durante décadas se foi instalando e fazendo com que o poder mirrasse, por excesso de atavismo, que se tornasse numa máquina que de tanto procurar, e se confortar, na crença da racionalidade produziu a decadência política e moral em que hoje nos debatemos. Somos herdeiros de uma pesada e terrível herança neste domínio. Estamos habitados pela ideia de uma sociedade dividida em Blocos. Uma ideia antiga, surgida nos Estados Gerais durante a Revolução Francesa, mas que a filosofia positivista, nas suas mais variadas projecções no mundo da política, no mundo social e no mundo académico, radicalizou e tornou definitivas. Ou pelo menos, dominantes e determinantes até aos dias de hoje. Esse pensar velho e modelado ignorou as profundas transformações que ao longo do séc. XX, e agora no início deste século, modificaram por completo as formas de pensar, de agir, de entender o mundo, a necessidade de o reorganizar face a alterações estruturais que  não são compatíveis, que se escapam, aos instituintes de controlo social, económico e político que as tradicionais formas de apropriação do poder reclamaram como suas.
As revoluções invísiveis, de longa duração, imperceptíveis, mas que se introduzem rápidamente nos hábitos, quotidianos, conhecimentos e saberes provocaram uma ruína quase irresolúvel nos discursos retóricos, racionalizados, organizados, carregados de falsas expectativas porque na verdade falam e narram o irreal e não a realidade. É esse discurso sobre as aparências que não compreende o país (dantes ouvia-se o jargão do 'país real') que está a viver, assim como o resto do mundo, profundas transformações no que respeita á cibernética, ao ambiente, a revaloração dos direitos civis, á exigência de direitos que o próprio planeta reclama. Passou-lhes ao lado, merecendo uma atenção meramente colateral, novos processos de afirmação como os direitos das mulheres, os direitos das crianças, a rápida transformação das mentalidades dos mais jovens que nasceram com a internet na sua genética, a aceleração do tempo e o encurtamento do espaço, enquanto coordenadas fundamentais da nossa memória e vida, ignoraram as alterações nas estruturas de produção, nas estruturas do saber e do conhecer e, agora, atónitos perante um mundo desconhecido, teimam nas fórmulas clássicas, ignorantes, atávicos, já incapazes de entender um país que exige novos desafios e, acima de tudo, exige uma nova ambição.
 

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

São três da manhã e o sono não chega. Á solidão tranquila do meu quarto chega o trinado dos rouxinois que, suspeito, solidários com a melancolia que me perturba o sono e me impõe a insónia e me fazem pressentir Florbela Espanca neste Alentejo orvalhado, e já friorento, que entra pelas frinchas das janelas.Dou comigo a recordar a República, e ela toda romântica nos olhos do meu avô António.Soldado brioso da Rotunda que afrontava as tropas de Paiva Couceiro e recitava esse dia como o mais completo e total da sua vida, depois de caminho andado, com os netos em volta, recriando a história desse parto, a menina dos seus olhos, pela qual lutara e se dispusera á morte sem ao menos ter disparado uma bala. Meu querido Avô António, esse teu olhar menino, mesmo quando já as rugas te acentuavam as expressões do próprio riso, que me entregaste com essas histórias de encantar a certeza, igual á tua paixão, de que naquele tempo, pardal de calção e sapatos rasgados dos desafios de futebol, a República era seguramente o primeiro lugar onde os homens habitam já muito perto do Céu bem perto do abraço fraterno a Grande Arquitecto construtor de Universos, de Vidas e de Sonhos. Foi necessário passarem muitos anos, desde essas noites de contas, noites iguais a esta, em que nos sentávamos à tua volta, ao porta de casa, ao fresco da noite escutando-te enquanto olhávamos as estrelas decifrando na escuridão os caminhos que a Republica nos abria entre o manto luminoso da Estrada de Santiago.
Enamorei-me aí. Servir a República, servir a tua história tão generosa e pueril, comandada pelo heróico Machado dos Santos, pejada de carbonários barbudos armados e barbudos, de marinheiros e soldados, também eles barbudos, de maçons, igualmente barbudos, tornou-se na obsessão de uma vida.Os teus contos rasgaram os sulco por onde caminhei, sonhando dar a vida por ela, que pelos amores ninguém mata, mas por amor não nos importamos de morrer..
Há muitos anos que não sei de ti, Avô. Partiste naquele inverno friorento, já lá vão 39 anos, e durante estes 39 anos, não se passou um único deles, que nesta noite não tivesse celebrado a tua aventura estranha, indo espreitar as estrelas do céu, talvez á espera de te reencontrar, sorriso menino num olhar de velho, que amava a sua República (que tenho admitir não saberes explicar bem o que era isso mas que desculpava porque era tempo de Ditadura e Salazar odiava a República do povo) como se embala nos braços o filho que acaba de nascer.
Esta noite as lembranças, a tua lembrança ingénua, chega-me parda e inquieta. Nem o murmúrio dos rouxinóis apazigua esta inquietação. E não festejo. Prefiro o silêncio ao turbilhão de alvíssaras, pois quando estamos magoados, não apetece escutar nem foguetes nem raivas ensandecidas pelo desespero. E continuo a amar-te como no primeiro dia em que vi, imaginada nas palavras do meu doce e saudoso Avô António. Tinhas o queixo alto e o busto exuberante, sensual, era mais forte que a coroa de louros que te iluminava o rosto. Minha eterna heroína. Meu definitivo desejo e amor acima de todos os amores fugazes. Mãe dos meus filhos e dos teus filhos. Promessa de fartura e paz, de liberdade e justiça, de fraternidade a rodos, e fartura pelas ruas e pelas casas de toda a gente. E esta noite, que se tornou numa noite tensa e magoada, não me liberto do fardo de saber que há mesma hora, por esse país imenso de generosidade, mirram alegrias e sustentos, mirram sonhos, Avô, o melhor alimento que recebi dos teus contos. Jurei servi-la, servindo-lhe a Vida.E sempre julguei que quanto mais a servisse, melhor seria a sua dádiva. Porque ao contrário de ti, tornei-me franciscano e crente absoluto de uma prática de vida que acredita piamente que é dando, que se recebe, que é amando, que se é amado, que é procurando compreender que se é compreendido. E hoje, 112 anos depois, escuto o silêncio da noite, e os doces rouxinóis que vieram até perto da minha cama cantar a ternura, e tempo que os teus sonhos, os meus sonhos, os sonhos de muita gente que juraram a procura da Igualdade, da Fraternidade e da Liberdade estão desfeitos ou em pesadelos de pranto, amanhã despertos sem que a palavra Esperança lhe habite o coração. Por ela dei-me todo, sem nada esperar em troca que não fosse o beijo liberto com que, depois das histórias dessa noite, nos sussuravas: Está na hora de ir para a cama. E aqui estou a escrever-te, no dia dos 112 anos, duvidando do teu sorriso menino, dos encantamentos desses caminhos mágicos que ela prometia, alegre e viva. Murchou. Transformou o amor em ira. Deixou que os homens, mesmo aqueles que regularmente juram fidelidade á Liberdade, á Igualdade e á Fraternidade vomitar obscenidades que, eu sei, ó se sei, que falam de medos e esquecem desiludidos a coragem de resistir.
Daqui a pouco vai amanhecer. Vão cumprir-se o ritos evocativos, com discursos e hino. Mas,apesar de tudo, desta mágoa tão grande, neste mar de gente em desespero, deste mar de sofrimento por onde navegamos, da minha própria mágoa e insónia, eu quero dizer-te Avô. E dizer ao Avô Francisco que por certo andará contigo  pelos céus, querendo saber dos netos, que acredito nos teus contos meninos. E que apesar destes dias ruins, de tempestade sem norte, eu vou esperar por ela. E por ela lutarei com a coragem que os dois me ensinaram. Agora que cada vez me aproximo mais do sítio de onde me olham, não sou capaz de mudar e sei que algures, por momentos adormecida, por momentos irada, está essa paixão, esse amor maior do que a própria Vida, que fala de memória e afectos, e continuarei resistindo. Servindo-a. Por ela resistindo e amando e entregando cada acto, todos os actos, desta já vivida existência que sempre trouxe no bojo, esta paixão nunca tardia de almas gémeas, e bem sei que só com essa paixão desprendida que tudo perdoa e das cinzas se refaz, como a Fénix, em possível pegar em cada pedra bruta e a golpes de vontade torná-la polida e bela, exactamente como são os sonhos.  Os rouxinóis calaram-se e escuto ao longe um dos meus rafeiros que ladra á lua. Talvez saúde a República. Eu planeio o dia em que lhe arrancaremos os farrapos andrajosos de tanta miséria e lhe daremos camisa de linho, alva e perfumada, que não lhe esconda o busto generoso, mas que lhe entregue o sorriso menino com que nos ensinaste a amar. A amar a nossa Republica!

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Quando os Monstros Acordam nos Caixões

Neste tempo de turbulência política e social, quando explode a desconfiança, quando as cargas de sofrimento levam os homens ás mais desencontradas emoções, serpenteiam pelo caldo de angústias as mais perversas das seduções, verdadeiros cânticos de sereia chamando os destrambelhados para um cativeiro de sereias assassinas, clamando os mais sinistros destinos e propósitos. Estar contra projecta-se muitas vezes numa ideação da representação social disforme que apela a que estejamos contra sem sabermos, a maioria das vezes para onde queremos ir e quais os projectos de que se está a favor. 
Vem isto a propósito de um apelo que circula nas redes sociais, assinado por um autodesignado movimento anti-partidário que confunde com primarismo boçal a liberdade que a Liberdade lhe entrega com o ataque mais violento contra ela. Agora pede a quem o escute que no próximo dia 5 de Outubro, haja uma invasão da Assembleia da República. Não sei para quê. Percebe-se que é contra os partidos. Mas não são claro quanto áquilo que querem ou são a favor.
Sou independente. Faço parte de uma geração que deu aos portugueses a possibilidade de viverem em Liberdade, de cada um escolher o seu próprio caminho, sem medo, sem mordaças, sem receio de estar a favor ou contra. Faço parte de uma geração que foi censurada porque estava contra. Que foi presa porque estava contra. Que foi obrigada ao exílio porque estava contra. Faço parte desse tempo em que havia cantigas proibidas, livros proibidos, ideias proibidas, de mulheres proibidas, sem direitos nem reconhecimento, tempo cinzento e pardo em que a guerra levava os melhores, em que a Justiça era conspurcada pelos tribunais plenários e pelas tristemente célebres medidas de segurança que metiam na cadeia, anos sem fim, sem julgamento, pessoas que apenas pensavam diferente.
A minha geração combateu e venceu esse tempo feito de silêncio e  mordaças. Queríamos tudo aquilo que depois conquistámos. Palmo a palmo. Éramos a favor de alguma coisa e conquistámos pela luta contra, aquilo que queríamos. Eu queria muita coisa. Era a favor de muita coisa. Sobretudo de um país livre onde crescessem os meus filhos, um deles nascido 19 dias antes do 25 de Abril. Escorreram-me as lágrimas ao saber da notícia que a censura tinha terminado. Nada é pior para um escritor do que ver as palavras amputadas pela bota cardada de um polícia qualquer. E queria, e quero, a democracia dos partidos. Organizados com projectos diferentes porque só somos iguais se formos diferentes no pensar e na capacidade de escolher. Defendo que devem existir em toda a geografia política, desde a direita á esquerda. Acredito nessa diversidade que defende a democracia crista, a social democracia, o socialismo, o comunismo, os regimes populares, os animais, a ecologia e por aí fora. Numa palavra: não consigo ser anti-partido, embora seja independente que já votou em diversos partidos ao longo de trinta e oito anos de democracia e que nunca votou antes dela existir porque estava proibido. Era do contra, não tinha direito a escolher.
Reconheço que a evolução dos vários partidos que nos representam encaminhou-os para a crise ideológica e de valores. Que precisam de profundas reformas internas, que urge redescobrirem a democratização, desfazendo clientelas, 'aparelhos' , burocratas, oportunistas que os usam com fins pouco altruístas. E isso vai acontecer mais dia, menos dia. O actual estado de degradação não se mantem por muito mais tempo. Porém, são a forma diversa de nós pensarmos, do nosso direito a escolher, do nosso direito a participar. É exactamente na Assembleia da República que está essa síntese do que o país pensa e, de alguma forma, uma parte de nós, pois que quando votamos, escolhemos, e entregamos a nossa confiança.
Como diria Churchil não será o mais perfeito dos sistemas. Faltam sempre mais escolhas e não existe um único hemiciclo, depois de cada acto eleitoral, que preencha todo os nosso mundo de expectativas. Mas ali mora o que de essencial nós quisémos que morasse. Aqueles deputados são nossos. Representam-nos, embora haja alguns que atraiçoaram a nossa confiança e tornassem vendilhões do nosso templo de esperança. São alguns, não são todos. Existe a mais poderosa das representações populares embora não exista a mais fabulosa das virtudes. São como a sociedade que representam com as mesmas virtudes e os mesmos defeitos. Mas são o corolário de uma Estado que vive dificuldades, é certo, mas que é muito melhor do que o outro onde se viviam piores dificuldades e imperava o medo e a iniquidade. 
É certo que estamos contra. E fazemos bem em ter regressado aos tempos do contra. Porém, assaltar o mais nobre órgão da soberania do Povo, não é um gesto contra. Nem é apenas um gesto anti-partido. É a caminhada trôpega, bronca, ignorante, boçal para um messianismo inglório e decrépito. A favor de um qualquer D. Sebastião que surja no nevoeiro da nossa própria desorientação e, como se sabe, ele não regressou de Álcácer Quibir. Este desbragamento que convida a assaltar a Assembleia da República nem chega a ser contra os partidos. É contra nós próprios, aqueles que mais sofrem, aqueles que mais necessidade têm de ajuda e, ensina a História, que exactamente por esses que os ditadores começam a encher as valas comuns de cadáveres. Precisamos de uma Nova Ambição, é certo. Precisamos de mudar de agulha e de pensar perante os terríveis problemas que nos assolam, precisamos mesmo que os partidos políticos se reconvertam em baluartes da confiança perdida. Mas que tudo isto aconteça não é necessária a fúria dos cegos de ódio e de incompreensão com a vida. Destes apenas sairá mais ódio e mais amargura. Já não têm nada para oferecer a não ser estar contra. O que no caso de se dar o assalto á Assembleia da República, apenas nos mostrarão como se consuma o crime de traição á Pátria. Pode ser que os vinte e cinco anos de prisão que os espera, lhes devolva a humanidade que perderam. E a lucidez suficiente para deixarmos apenas ser do contra e tornarmos a ser os caminhantes do sonho e da esperança.  

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Os Políticos e o Populismo


 
A agudização da crise, com o apertar do cinto, o lançamento de medidas anti-populares, onde algumas são bem injustas, diria mesmo desumanas, abriu a caixa de Pandora libertando as emoções mais obscenas e angustiadas, onde o insulto, a desconfiança, o aumento da agressividade produziu uma fala dominante, carregada de raivas e falsidades, que tem corolário na slogan maior 'Eles são todos iguais'. Eles, os políticos, claro. Levando até ás ultimas consequências este grito, sem esperança, fatalista, apocalípitico e, acima de tudo, acrítico, sem regra nem excepção, ser candidato ou eleito, seja qual for a dimensão do cargo, conclui-se que de simples elemento de uma assembleia de freguesia, passando pelos presidentes de junta, de câmara, deputados, ministros, governo, oposições, 'Eles são todos iguais'. Nem a sarcástica ironia de Orwell entra nesta regra absoluta, onde poderiam existir uns mais iguais do que outros. Não. Eles são todos iguais. Iguais em quê? São todos chulos, ladrões, corruptos, mentirosos, vigaristas, trapaceiros, traidores do povo. Não existe um único que não seja assim porque são todos iguais.
A partir desta verdade absoluta compõem-se os diversos estribilhos, cuja falta de gosto e populismo  barato, incendeia corações mas que são manifestos de mau gosto, de primarismo ao nível do raciocínio e compreensão do mundo.E um discurso destes, vincadamente demagógico, insensato e pouco sério, mete no mesmo no saco do lixo qualquer cidadão que pense candidatar-se a qualquer órgão de soberania, desde uma simples junta de freguesia até ás instãncias máximas do poder, a pensar duas vezes e, nas finalidades últimas, a desistir de participar na vida pública, por não ser incluindo injustamente no lote do 'Eles São todos Iguais', sair do conforto da sua casa e da sua roda de amigos para ser apontado como bandido, corrupto, chulo, e outros epítetos do mesmo calibre apenas porque um dia lhe apeteceu servir o seu país. No fundo esta moda do 'Eles São Todos Iguais' mais não é do que um produto de uma sociedade zangada, que não compreende o país e a situação a que o país chegou, consequências de posições emotivas de defesa de interesses que se degladiam e que conduz á desmotivação, á intolerancia e, paradoxo dos paradoxos, ao pedido subentendido de uma força providencial que acabe de vez com esta corja de 'Eles são todos os iguais', ou seja áo regresso do mito sebastiãnico, que traga das brumas um ditador qualquer que imponha juízo aos 'Eles São Todos Iguais' e que, naturalmente, como qualquer ditador que sabe o que faz, silencie de vez aqueles que gritam 'Eles são Todos Iguais'. E quem conhece esta história, que aqui se passou com o fim da I República, no Chile, de Salvador Allende, na Espanha republicana destruída por Franco, sabe bem que os gritadores ficaram no silêncio das valas comuns, das prisões, fuzilados sem pena nem agravo.
Devemos reconhecer que o tempo que vivemos não é fácil. Talvez das maiores crises que vivemos depois do 25 de Abril. Que se deveu a políticas que hoje descobrimos que são erradas, prolongadas durante décadas, mas que só a insensatez leva a admitir que foram um imenso negócio nojento feito por políticos de várias gerações, sem escrúpulos, chulos e ladrões. E só a ignorancia mais absoluta, o analfabetismo mais endémico e, sobretudo, uma memória de formiga, pode dizer que esta crise fez recuar o país aos anos 50/ 60 do século passado. Não conhece. Ignora o que desde então se fez. Desrespeita os nossos jovens mortos numa guerra injusta bem longe da Pátria, ignora o país rural, pobre, sem escolas, sem universidades, sem estradas, sem esgotos, sem luz, um país com medo cercado pelo pensamento único, o país que apenas admitia as manifestações a favor do ditador, um país de sindicatos proibidos, de censura prévia, de prisões a abarrotar de presos políticos. Um país de uma ignorãncia a roçar a boçalidade que até muito tarde ainda confiava que os comunistas comiam criancinhas,  sem direitos, onde a ditadura impunha que gritos se podiam dar e quando podiam dar.
O insulto 'Eles são todos iguais' tem subentendido um regime que não seja este onde vivemos e onde a liberdade permite tudo, até chegar a este niilismo básico. O que impõe aos homens livres e de bons costumes, áqueles que fazem da sua entrega á vida pública um acto de generosidade, e são milhares por esse país fora que o fazem, a urgência de resistir em duas frentes de combate. Servindo com o desprendimento dos homens justos as suas freguesias, os seus concelhos, a sua gente, com todas as dificuldades que hoje se conhecem e, ao mesmo tempo, recusar este charlatanismo injusto, desumano e brutal que mete no mesmo cesto milhares de homens e mulheres livres e justos, vindos de todos os lados da política, e uma dúzia de crápulas que se serve da política para proveito próprio para a negociata e para os jogos do nojo. É urgente essa resistência. Em nome da cidadania e da construção colectiva do país. Dizer mal é fácil, sobretudo numa sociedade aflita. Construir caminhos límpidos e solidários é muito mais difícil. É ao fazer esta escolha que somos grandes. Para defender a liberdade que permite uma cultura cívica de saber e conhecimento. A liberdade que permite todos as formas de expressão. Mesmo as injustas e demagógicas.É preciso resistir pelos nossos filhos, procurar caminhos para os nossos netos, assegurar uma país mais limpo, é certo, mas também mais culto e com uma auto-estima que não se rende ao miserabilismo do ódio. Que afirma a Justiça, que despreza a intolerancia. Que afirma o conhecimento, que é indiferente ao oportunismo. Que se aprende e reaprende, igorando ressabiamentos e insultos. É preciso encontrar uma plataforma superior de resistência para que seja possível caminhar sem muros, nem abismos. E já agora com Portugal, amante maior, no coração.


quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Os Gritos, a Miséria e o Resto.


Se a crise se resolvesse com insultos, a coisa tinha ficado resolvida esta semana. As grandes esperanças estão agora postas na manifestação convocada para este fim de semana. Ou então para a próxima no final do mês. Vamos aliviar a goela e berrar as nossas angústias. Sei bem o que isso é. Já fiz esse exercício em Alvalade contra o árbitro, contra as equipas que lá vão dar-nos pancada mas o resultado é inexorável: o Sporting continua sem ganhar um campeonato.
A angústia que vai crescendo tem que explodir, é certo. Mas a verdade é que nos momentos dificeis, a serenidade é o maior dos trunfos. E não consigo ficar indiferente quando oiço alguns dos paladinos da democracia e da liberdade, gritando indignações como se não tivessem responsabilidade nenhuma no estado a que o Estado chegou.
É da nossa natureza procurarmos culpados. Uma velha e beata costela de inquisidores continua a exigir-nos fogueiras, ódios e a representarmos o papel de Pôncio Pilatos. Lavando as mãos e deixando que outros façam. E por vezes fazem mal, como parece ser agora o caso. E nós gritamos, raivas do coração, de frustração, de ódio, de ressabiamentos de todos os matizes. 
Falo com a serenidade de quem enfrentou muitas vezes a morte e sabe que é nesses momentos que o sangue frio vale mais do que qualquer explosão de raiva. Por isso, volto á questão essencial: é urgente apresentar soluções racionais, ponderadas, que sejam mais do que a indignação e a raiva. Sou solidário com Mário Soares que está indignado. Com Manuela Ferreira Leite que exorta á sublevação da Assembleia da República, com Helena Roseta que se oferece á prisão para que esta política não continue. Estou reformado há quatro meses e vejo a minha reforma, depois de quarenta e um anos de trabalho, feita em cacos. Não posso deixar de estar solidário. Mas julgo que precisamos de mais qualquer coisa. Precisamos que Bagão Félix, que já foi ministro das Finanças, que Helena Roseta, que teve sempre grandes responsabilidades na vida pública do País, que Seguro que quer ser o futuro primeiro ministro nos digam por onde vamos. Não basta reclamar contra o que se tem passado. É fundamental que se saiba para onde se vai, como se vai, com que medidas nos libertamos desta claustrofobia da ira. E quando aqui se chega, não há respostas. Este é o caldo que gera as insurreições e produzem mais miséria, mais ira, mais mágoa e mais sofrimento. Precisamos de ir além do repúdio e encontrar soluções. Para mal dos nossos pecados parece, pelo menos até hoje, que soluções mais ninguém tem a não ser o governo. É mau quando assim é. Muito mau. Não estamos apenas em crise financeira. A crise de respostas alternativas é bem maior, o que gera maior angústia. Como tem acontecido na Grécia onde a desorientação geral provocou mais danos na auto-estima colectiva do que saídas para o buraco negro onde se afundam sonhos e projectos. Ou muito me engano ou estamos a querer esse caminho e vamos ver-nos gregos para sair desta. Recorro a Shakespeare para pedir que os astros nos iluminem o caminho pois os homens não o reconhecem nem nos ensinam novos trilhos.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Nada contra a Vida, Tudo contra a Morte

Meu caro Edward:
Desde aquele fatídico 11 de Setembro, nunca deixámos neste dia, de trocarmos palavras de conforto pelas tuas profundas mágoas, pelas minha mágoas dolorosamente repartidas contigo e com os nossos companheiros nesse imenso funeral em que acabámos por nos encontrar. Embora sabendo a verdade, a verdade mais terrível que se podia conhecer por esses dias em Nova Iorque, foste o exemplo de um homem inteiro, polícia de mão cheia e amante extremoso, sem tempo para procurares a Dolores, essa magnífica mulher, bem disposta, bem humorada, que inventava a tal paella que parecia cozinhada nos céus.
Este ano estou mais pobre. Já não vou ouvir a tua voz pois que sem pedir autorização a ninguém, partiste bruscamente, cheio de saudades da tua Dolores. Escrevo aqui. Sei que estão juntos os dois, aí no canto mais doce de alguma estrela, saboreando o resto do vosso amor amputado naquele dia. E escrevo, como sempre, para te dar o abraço do costume, em memória da tua Dolores, da minha amiga Dolores, que tão bruscamente desapareceu no inferno das Torres que se desmoronavam subjugadas ao poder do ódio.
Sabes, Edward, esses dias mudaram-me. Embora já tivessem passado duas semanas quando cheguei perto de ti, na Divisão da Metropolitan na Broadway, e tendo sabido pelo Mckinley do FBI da tragédia em que se transformara a tua vida pessoal, foi com um aperto no coração que entrei naquela tua/nossa casa e percebi que ela era o rosto do rescaldo da tragédia. Por tantos polícias que morreram, por tanta fotografia colada nas paredes, e nas paredes das ruas, de gente desaparecida no holocausto, e os rostos dos vivos. Cinzentos de dor, quase sonâmbulos, de fotografias dos seus entes queridos ao peito, e perguntando, perguntando a todos, uns aos outros, talvez à restea de Deus que procuravam e lhes disse que os seus estavam vivos e nós sabíamos que não estavam.
Mal tivémos tempo para um abraço e, Santo Deus!, tu conseguias dirigir a tua unidade, procurar informações de Dolores, dar informações a toda a multidão que procurava os seus. Conseguias ser marido e capitão ao mesmo tempo. Vencendo a tua dor, ajudando a vencer a dor dos outros, no meio daquele pranto feito de silêncios e de murmúrios de orações em todas as línguas, das suplicas e medos de todas as cores, que cruzavam Manhatan prenhes de desespero. Milhares de zombies destruídos pela dor, milhões de fotografias que se repetiam doentiamente pelas paredes, pelo chão, do amontoado de velas, bandeirinhas, e mais fotografias nos jardins da City Hall, e das preces, e do medo, e na incompreensão perante a tragédia que desabara sobre uma das mais belas cidades do mundo. Fizémos o que pudémos para criar a ilusão de que te ajudávamos. O Mckinley sacou duas fotografias da Dolores que tinha em cima da tua secretária e fomos por ali abaixo. Sabíamos que nem tu acreditavas nos nossos esforços, polícia experimentado, com os olhos rasos de tantos mortos, sabias que Dolores não voltaria a cozinhar nem a cantar o Cielito Lindo.E juro por Deus que nunca vi tanta dor que se acotovelava, que silenciosa ou em cânticos ou orações conjuntas esperava que dos céus descesse o milagre que as centenas de bombeiros não conseguiam recolher da imens amontanha de destroços. Vi bombeiros a trabalhar e a chorar os seus companheiros mortos. E putos á perguntar pelos pais. E pais a perguntar pelos putos. E a angústia profunda de ouvir tantos nomes sem uma única resposta que não fosse um silêncio fechado, um menear de cabeça e o regresso ao horror das ruínas.
Já to dissera e digo-te agora mais uma vez: encolhi-me em oração junto a um imenso grupo que rezava liderado por um padre catolico. Foi por acaso. Foi ali que as pernas e o nó na garganta me tolheram o pensar, confrontado com a omnipresença da morte, da dor e do desespero de uma população que não se rendia. Hoje, onze anos depois, tenho saudades tuas. Não desse dia de tragédia, mas dos outros dias, de outros anos, em que nos divertimos. A última vez foi no Carnegie Hall. Eu passei a tarde na candonga para comprar bilhetes para irmos ver os Requiem de Mozart e de Fauré. E agora também partiste. E desde esse dia de tanta mágoa o mundo mudou. Mudou tudo, em todo o lado, menos a angustia que aí nasceu porque todos sabíamos que depois dessa vitória da Morte contra tantos milhares de infelizes, os homens do mundo inteiro estavam zangados.
Mas não te quero falar de zangas e de coisas feias. Este ano, em que já não posso ouvir a tua voz, espero que vejas esta carta no teu céu, onde por certo habitarás no meio dos justos, porque eras um homem bom e justo. Apesar de irlandês, como brincava a tua mulher.
Esta noite acendi uma vela a S. Francisco. O nosso Irmão maior que nos ensinou que só no encontro com a morte encontraremos a vida eterna. E vai brilhar na varanda da minha casa toda a noite. Para vos assinalar o sítio onde vos choro com saudades e vos saúde pelo que de bom aprendemos a amar da Vida. E sendo uma vela nostálgica, incorpora a chama da Vida, porque o terrorismo e a morte não venceram. Fomos mais fortes. Vocês foram mais fortes. Nestas horas de amargura em que o meu país, acendo-a também por ele para que,tal como vocês, encontremos o caminho da esperança que nos leve á redenção por tanto sofrimento de tanta gente que sofre.
Até um dia, Edward. Dá um beijinho á Dolores por mim. E quando regressar a Nova Iorque, agora que sou abstémio, fica prometido que regresso á nossa cervejaria na Broadway e vou beber um valente caneco á Amizade. A este força transcendente que a morte jamais apagará. 

A Miséria Moral da Política e o Populismo primário


Ouvi a comunicação do primeiro ministro ao País e fiquei chocado. Não deve ter havido um único português que não tenha sentido esse murro nos estômago que foi cada uma das medidas que informou que iriam constar no próximo Orçamento. Depois do primeiro choque em que se percebe que a situação do país continua em dificuldade profunda, a pergunta que me assaltou foi esta: Não haverá outro caminho? As tais gorduras do Estado só atingem autarquias e a RTP? E as empresas públicas? sobretudo na área dos transportes completamente destruídas por greves e mais greves, domínios de um sindicalismo radical que procura viver acima de todas as possibilidades e prejudicando a vida de milhões de utentes? e os Institutos dos boys? e as célebres PPP's? e a falta de crédito para as empresas relançarem a economia? e a Fundações e a mama de subsídios? e a multidão de subsidiodependentes em todas as escalas do poder do Estado?
Bom, dei de barato quando já menos chocado, comecei a pensar e a acreditar que esta comunicação apenas era parte de outras medidas que vão ser inscritas no Orçamento e que, na feliz expressão de Marcelo Rebelo de Sousa, estas tratavam do mexilhão e com o OGE chegarão as outras que tratam de outros aspectos da restrição financeira.
Seja como for, a comunicação foi de tal modo violenta, que é natural que neste momento existam muitos milhões de portugueses a perguntar por outros caminhos. Com a pobreza instalada, com o desemprego em patamares trágicos, com a economia quase parada, julgo que um ano de Troyca e de sofrimento porão muita gente a perguntar se deve ser por aqui o caminho ou existe outro menos doloroso e que cumpra os acordos internacionais.
Procurei ouvir os outros partidos que estão fora da coligação. E são unânimes. Para o PCP isto é a continuação do pacto de agressão, chavão inventado com tanta demagogia e vacuidade que nem se percebem bem as motivações dos agressores. Pode ser um pacto de agressão internacional porque a Espanha, a Grécia e a Itália transpiram sangue como nós. Mas quem são os homens e as instituições que rubricaram esta pacto de agressão? A resposta é sempre a mesma: o grande capital.Oiço isto há anos. Portanto, nem vale a pena ouvir. Quando se trata de alternativas, o que diz o PCP? É preciso mudar de política e acabar com esta política de direita. Mas mudar para qual política? Bom, isso o PCP não diz. Fala genéricamente nos trabalhadores, um mundo difuso de interesses, sem uma concretização específica de medidas que impeçam a bancarrota.
O Bloco de Esquerda vai pelo mesmo caminho. Assegura que isto é um golpe de Estado económico. Contradiz-se. Se o problema é financeiro, a haver esse tal golpe de Estado seria financeiro mas fica-se por aqui. E lá voltamos aos trabalhadores, e á sua defesa intransigente, sem especificar medidas que não sejam pulverizar os acordos que saíram do compromisso.Acho que esta gente ou não tem consciência de que estamos em iminente colapso financeiro e económico, enquanto país, e que tudo faz para que esse colapso exista. É a política da terra queimada, da revolução pela revolução, e para tanto quanto pior, melhor.
O PS demarcou-se violentamente do anuncio de Passos Coelho. E fez bem.Ninguém que quer ser poder deixa vincular-se a medidas tão duras e tão penalizadoras. Mas falta o resto. Para além das declarações de denúncia, tão iguais ás do PCP ou do BE, quando chega a hora de mostrar o outro caminho, a resposta é: o PS não quer mais austeridade. Então o que quer? Que diga como faz. Que diga como cumpre os acordos que ele próprio assinou enquanto governo. Que diga que este PS nada tem a ver com o outro PS que durante anos e anos foi conduzindo o país para este beco de angústias. Porque a verdade é que Sócrates não é o pai desta crise de excessos. Começou bem mais cedo pela mão de outro governo socialista, o de António Guterres e com Sócrates apenas se revelou na sua faze mais crítica. Esta crise não tem raízes de agrião, leves e sem profundidade. Tem raízes de carvalho velho e de uma produção ideológica que durante dez/quinze anos nos conduziu aqui. 
No fundo, no fundo, aquilo que esta esquerda, que não se entende entre si, que se odeiam, que se consideram inimigos uns dos outros, disputando o mesmo espaço político, apenas quis um pretexto que construiu sobre um mau texto. Para gritar, para inflamar legitimas indignações, para apelas ás emoções e ao insulto, para pôr de cabeça perdida quem já se sente perdido mas caminhos alternativos: nem um! Nem um!
Acredito mesmo que o pais está assim por causa desta miséria moral. Do protesto sem indicar caminhos sérios e concretos. Sem esmiuçar o que é isso da política de esquerda, de como reduz despesa, de como faz crescer a economia, de como combate o desemprego. Desde sexta feira que se gritam palavras de ordem e nem um pingo de ideias pensadas e organizadas que nos ajudem a escolher caminhos de futuro. Multiplicam-se as insurgências que se acomodam nas palavras chave do costume de um país debilitado no pensar: Gatunos, Vigaristas, Corruptos, coisa que alivia a frustração mas não resolve problemas domésticos nem familiares. E o caminho não existe. Caminho alternativo não se vê. O caminho que nos mostram é sempre o mesmo: Descer a avenida em manifestação até ao Rossio ou até a Assembleia da República. E se ouvirmos os comentadores (talvez com excepção de Medina Carreira ou de José Gomes Ferreira) o estribilho é sempre o mesmo. Não encontramos caminhos. Outros caminhos que nos façam sair deste buraco negro onde caímos e isto é bem mais doloroso do que a comunicação de Passos Coelho. Porque daria pretexto para mudarmos e democraticamente escolhermos outros. A inegável e desastrada verdade é que esta oposição é boa em chavões, em palavras de ordem, em insultos, em denúncias, em estimular os ânimos da malta justamente descontente mas sem rumo que não seja uma mão cheia de banalidades e de promessas vagas de um paraíso que sabemos que não existe.
 

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Curei-me! Um tipo chamado Stress ia dando cabo de mim!


Aquilo que escrevo foi uma experiência e que traduzo num conselho. Claro que é conselho de 'saber de experiência feito' e perdoe-me algum médico que se meto foice em seara alheia. Mas há um tipo que anda por aí a revolver as entranhas de muita gente, umas vezes tão discreto que mal se sente, outras vezes tão ordinário e tão atrevido que nos põe de rastos. Chama-se Stress, tem ficha policial por homicídio, longo cadastro como agente provocador de doenças que nem nos passam pela cabeça que podem existir. O artista não se vê. Pezinhos de lã, silencioso que parece bem comportado mas é um ordinário em todas as dimensões. Até porque gosta de ser desprezado para atacar melhor. Eu, por exemplo, não ligava a essa coisa, doença de ricos e de gente que não quer trabalhar. Desprezava-o, dizia para comigo mesmo que jamais seria morada de tal bicho e, depois, foi aquilo que se viu.
O tipo é manhoso. Entra sem pedir licença e vai por aí fora e quando estamos distraídos ataca sem hipótese de defesa. Muitos dos enfartes que enviam pessoal em barda para os cemitérios são da sua autoria. Mas, agora que o médico me mandou em paz, que me libertou deste macaco, que me sinto com asas para voar e pernas para dar a volta ao mundo, que descobri outra vez o que é estar de boa saúde, quero partilhar com os meus amigos as astúcias deste tipo.
Quando começar a pensar que o trabalho é a única coisa que existe na sua vida, que se desinteressa de um filme (se gosta de cinema) de teatro (se gostar de teatro) ou de qualquer outra das suas afeições porque ainda tem mais isto para fazer, e mais aquilo, e não tem tempo, e passa dezasseis, dezoito horas agarrado ao trabalho, esquece fins de semana e festas de guarda; quando o sono não vem e vem o recurso ao comprimido para dormir cinco ou seis horas, quando a ansiedade lhe retira o apetite, o computador não responder o irrita, assim como qualquer barulho fora do comum, começa a sentir dores difusas no corpo ou, começam a insistir em determinado local do organismo, está contaminado pelo tipo. Não tem hipóteses. Está entalado e lixado se não puser os mecanismos de defesa a trabalhar. Ou é enfarte que se aproxima, ou hipertensão, ou a ulcerazinha da ordem, ou a colite ou
distúrbios do sono ou outra coisa qualquer. A mim calharam-me divertículos. Coisa que nem sabia que existia e, mesmo sem saber que existia, eles cá estavam. Dores permanente nos intestinos, muitas vezes agudas, internamentos hospitalares, comboios de antibióticos, uma persistência que nós não queremos acreditar que mata. E até mata. O Stress é um natural assassino de distraídos.
Hoje o médico mandou-me á vida. Não quer saber de mim. E o remédio para me safar do tipo até tão simples que, após mês e meio de cura, depois de quase um ano de sofrimento. Exercício físico! Não é tonto ser uma coisa tão simples? Uma hora por dia a caminhar, a nadar, a fazer qualquer coisa que ponha o corpo a mexer e não há bandido deste tipo que entre dentro de nós. Por razões agudas da moléstia vi-me obrigado a recolher. A ficar fechado, uma ou outra ida ao cinema, um ou outro romance lido, e enfiado em casa a escrever ou dormir, ou ver televisão e exercício físico e se as dores regressassem um buscopan para sossegar. Há quinze dias que o Buscopan repousa plácido e quietinho na minha prateleira de medicamentos. E durmo! Os comprimidos foram á vida. E tornou a alegria de partilhar as coisas boas que, até podem ser trabalho, mas deixaram de ser esforço para se tornarem em alegria e prazer. Dei conta do tipo e aconselho-o a livrar-se dele. Corra com esse Stress da sua vida. Ponha-lhe uns patins e mande-o dar uma curva. Levante-se e ponha ao caminho. Uma hora de marcha, uma hora de ginásio, uma hora de piscina, destine essa hora àquilo que entender e mais gostar e, acredite, estou a ajudá-lo a salvar-se de morte certa (que o animal é mesmo assassino) ou doença chata e mal humorada.
Hoje, voltei as costas ao Hospital, com esta paz no coração. Venci o tipo. E foi tão estúpido ter sido agarrado por esse maldito Stress que não consigo deixar de partilhar com todos aqueles que, como eu, passaram anos, vidas, noites e dias, nessa ansiedade maior que é pensar que temos a salvação do mundo nas mãos. Não temos. E a tal horinha só para nós, não agudiza a crise, não altera os destinos da humanidade, e dá-nos alento, força e alegria para vencermos esses desafios que estão aí para serem vencidos.
Dê cabo desse parasita. E não se iluda. Sem saúde nada faz sentido. Com saúde, tudo faz sentido. Até a capacidade de gostarmos um pouco de nós e e muito mais dos outros. Adeus, ó Stress. Vai à vida, pá! 

domingo, 5 de agosto de 2012

PELA PAZ NO DIA DE HIROSHIMA

Faz hoje 57 anos que foi lançada a bomba atómica 'Little Boy' sobre a cidade de Hiroshima e os homens puderam assistir á dimensão grandiosa e brutal de um holocausto que, em minutos, arrasou uma cidade inteira.Um facto que marcou o princípio do fim da 2ª Guerra Mundial mas, também ás gerações futuras, nas quais hoje nos incluímos. O horror desse dia, a que se associou o horror das descobertas nos campos de concentração nazis, ficaram como um sinal que marcou o início da luta pela PAZ. Pela procura de horizontes de esperança onde a Liberdade se constrói na tolerância, no respeito pela diferença, na defesa dos direitos humanos. Aprendemos nesses dias de maior tragédia que, por mais que a vertigem do ódio possa abalar a inteligência e transformar os homens nos piores predadores da Terra, lutar pela Paz é lutar pela Vida. Recolho-me num silêncio de oração pela memória de todos aqueles que foram dizimados pela tragédia apocalíptica e reencontro no sacrifício de milhões de mortos inocentes, a força para lutar para que a nossa terra, a nossa gente possa construir o futuro com o direito á esperança. Por mais que doam os dias de crise que hoje vivemos, por mais que se soltem indignações e mágoas, a Paz criativa e exaltante, a Paz culta e libertadora, a Paz fraterna e crítica, será sempre fonte da Vida. Que os mortos descansem am Paz. Que a nossa vida se construa na PAZ.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Suspensão de Mandato e Politiquice

Vai fazer um ano que me foi diagnosticado um problema de divertículos e polipos intestinais. É daquelas doenças que não matam, se formos cautelosos, mas moem. Moem mesmo muito. Ao longo dos últimos nove meses tive três internamentos e períodos dificeis de convalescença. E tenho 59 anos.
Fui preparado numa escola - a PJ - que a doença não é coisa a que se ligue. Quando se trabalha e se vive numa brigada de assaltos á mão armada não há tempo para problemas de saúde. A não ser aqueles que ameaçam com a morte. Mas tenho 59 anos. Esse tempo já passou e a saúde precisa de cuidados que, confesso, não me habituei a ter, vivendo sempre no limite com toda a intensidade, sem olhar a horas nem a noite, nem a cansaços.Quem trabalhou comigo e me conhece , sabe que foi sempre assim. Ainda há poucos meses, saí do hospital directamente para uma Assembleia Municipal. Foi em Dezembro e não fui capaz de aguentar até ao fim. Saí desfalecido, semi-morto de cansaço e dores. Mas ainda assim, fui lá defender os projectos do executivo perante aquela velha retórica do simplismo que vê árvores mas mal lobriga a floresta.
Mas tenho 59 anos e a recuperação desta moléstia obriga a fugir do stress, ao recolhimento, á calma. Em dezembro percebi que não conseguia manter a pedalada que estava habituado desde os velhos tempos. Procurei abrandar e senti-me culpado por isso. Quem viveu 41 anos de serviço público com tanta intensidade não se reconhece quando desacelera. Embora tivesse entregue tudo a Santarém, incluindo este pedaço de saúde que me tem faltado, sentia-me mal. Pedi para me pagarem metade do ordenado. Eu jurei lealdade ás funções que me foram confiadas e sentia que essa lealdade passava por menor retribuição voluntária. Fosse mais cínico e teria continuado como se nada tivesse acontecido. Mas não chego a essa manjedoura da canalhice sem me repugnar. Na altura fui acusado das coisas mais disformes. Eu olho e vejo gente que não sabe o que é isso de viver no limite, longe do conforto, longe da preguiça, sem relógio, sem paixão pelo serviço público e percebo que para cabeças formatadas para essas regiões da modorra espiritual e intelectual seja incompreensível que alguém se voluntarie a perder metade do ordenado porque se sente mais frágil. Compreendo e desculpo. Não somos todos iguais e o império da fortuna manda mais do que qualquer bem espiritual, logo quem acredita noutros valores é importante que seja fustigado pela mediocridade. Aceitei esse castigo sem uma única palavra de protesto.
Mas tenho 59 anos e os médicos que me perseguem os passos, e fiquem a saber que a coisa mais chata do mundo é ter médicos a perseguir-nos os passos, dizem-me que ou abrando ou isto vai dar para o torto. E ameaçam que o torto pode ser muita coisa e nenhuma delas é boa. Abrando a velocidade durante uns tempos, a coisa recompõe-se, e há muita vida e muitos projectos para viver.
Foi neste contexto que chegou a minha reforma, que é menor que o ordenado de presidente da Câmara  mas suficiente para viver com a frugalidade com que se habituou a viver um velho polícia, e o honroso convite para, daqui a 16 meses. Ou seja daqui a mais de um ano, concorrer á Câmara de Oeiras.
Pensei com os meus botões que tinha chegado a altura de respeitar as indicações dos chatos dos médicos. Foram sete anos intensamente vividos e a minha saúde já não é o ferro e o aço de outros tempos. Chegou tempo de parar que 59 anos não pesam muito mas pesam o suficiente para pensarmos que a vida ainda tem muito para nos dar e para nós darmos. Por outro lado, tenho um romance entre mãos que procuro terminar e uma série televisiva para escrever. Sossegado. No abrigo da minha casa sem o tal stress que, garantem os clínicos, é o inimigo maior dos meus queridos divertículos.E disto fui sempre dando conta pública. Não escondi que estava prestes a tomar esta decisão. Basta consultar este blogue. 
Meti a suspensão do mandato e sei que hoje houve orgia na sessão de Câmara onde foi apresentado. Que isto é poeira para os olhos. Que isto é Oeiras (aquela rapaziada que quer ser opositora nem sabe quando são as eleições num calendário com mais de um ano de distância). Que isto é isto e mais aquilo e mais tantos disparates que auguro que se vão prolongar por uns dias.  Mas tenho 59 anos no BI mas de vida vivida julgo ter chegado á idade de Moisés. Talvez nem tanto. Mas que ando pelos 159 anos não tenho muitas dúvidas. Por isso, que escute o ruído com compaixão e com a mesma frontalidade que investi nos meus actos. E a mesma verdade. Não preciso de desculpas de mau pagador para assumir vitórias, derrotas e decisões dificeis. Esta foi difícil mas tenho 59 anos, uma filha com catorze, três netos fabulosos, e quero, preciso de viver mais um bom punhado de anos para os ver crescerem e serem felizes. E grandiosos no pensar. Bem longe das balelas ridículas que tenho de escutar.
Devo dizer que hoje estou contente. O meu neto Henrique faz oito anos e dei um bom avanço no meu romance. Que Deus nos proteja e proteja Santarém do ser e do pensar pequenino, velha e terrível herança da qual presumo que se libertou, pese o ruído e a vulgaridade de alguns dos seus mais activos arautos.

sábado, 30 de junho de 2012

Parabéns, Sporting!!!


Estás velho. Cento e seis anos de vida é muito para um leão. Eu, que tenho mais ou menos metade da tua idade, já ando em briga com dores tresmalhadas que ora nascem nos joelhos ou nos ombros ou nas costas, sem origem séria nem diagnóstico certo, bem me espanto com a tua longevidade. Tens sido companhia da minha vida. Celebrei a minha idade e o meu tempo, celebrando-te. Posso até dizer que nasci das fintas do Albano e o meu primeiro choro está ligado ao estrondo dos pontapés do Peyroteo e do Travassos fazendo golos que impressionavam o mundo. E lá estavam o Vasques e o Jesus Correia nos dribles e passes de morte. Poderia dizer de outra maneira e proclamar, narcísico, que nasci ao som destes Cinco Violinos. Mas não chego a tanto. Falo de memórias, dessas memórias que palpitam no peito e nascem vitórias e alegrias e comunhões. E por vezes, derrotas. Assim como é a vida. Feita de sonhos, pesadelos, cansaços e canseiras. Cresci, amadureci e comecei a envelhecer assim como tu, meu leão de estimação. Que também te chamaste Seminário e Hilário, ou Carvalho e Damas ou Yazalde e Manuel Fernandes. Ou mesmo Figo. Ou Futre. Ou Cristiano Ronaldo. E que foste olímpico como Carlos Lopes ou recordista mundial como Fernando Mamede ou um galgo de montanhas como Joaquim Agostinho. E tantos outros, e tantos outros, que a minha vida, feita metade da tua, está cheia destes heróis e muitos mais, que construiram irmandades de vencedores, de conquistadores, embora, por vezes, também vencidos. É esse o cerne da alma sportinguista - a dimensão humana. Capaz do melhor. E do pior. Capaz de golear o Manchester e ser sovado pelo mais obscuro clube. De se alcandorar aos píncaros do Olimpo com o seu panteão de deuses, por nós venerados, e depois de soçobrar em qualquer praia quando já a terra está bem á vista.
Mudei de opinião muitas vezes. Descobri formas de pensar que me levaram a pensar de outra forma. Olhei o mundo e a minha rua com olhos diferentes, conforme a idade escorria célere e invisivel entre os dedos. Mas nunca deixei de te ter sempre, em todos os lugares do meu caminho como o entusiasmo que se renova na esperança de mais vitórias e com tolerância (cada vez maior) para os dias de pouca alegria. Estás velho mas és um Leão. Há sempre mais uma alma a despertar em cada rugido e em cada passo da nossa vida comum. Obrigado, fiel companheiro, por tantos anos de viagem. A imortalidade está á tua espera. Quanto a mim, por aqui vou, contigo na lapela e no cachecol, na voz e no coração até que a minha hora chegue e já não haja mais cânticos dentro de mim para te celebrar. Lado a lado, companheiro. Até que a morte nos separe. Viva o Sporting!

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Justiça Cega : passou para as quartas na RTPi


Quase um ano volvido desde o seu começo, o programa Justiça Cega da RTPi conquistou o seu espaço e passa agora a estar em antena, ás 4ªs feiras pelas 22 horas. Vai de férias em finais de Julho e regressa em Setembro. Tornou-se num dos programas de maior sucesso da RTPi, multiplicou as audiências, ganhou vida própria e uma referência de debate. Estou satisfeito por contribuir para este êxito mas sobretudo deixo um abraço de apreço e parabéns á RTP pela forma como promoveu a um programa de culto e de larga divulgação um conteúdo que visava apenas um nicho do mercado audiovisual.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Convento de S.Francisco - Uma paixão


Este é o mistério da fé.E dos sonhos. Há três anos era um moribundo. Um saco de entulho. Uma estrumeira. E um indiferença. Quem te memória recorda-se que o Convento de S. Francisco era uma ruína enxovalhada. Tão maltratada que do interior retirámos mais de 10 toneladas de lixo.Era o lugar da visita oficial que terminava invariávelmente no desabafo: isto não pode continuar assim!, e acabava por continuar e sempre pior.Da disputa dos grupos de defesa do património. Havia sempre um projecto que saía do discurso e da bravata. Adjectivado com uma indignação. Muito intelectual a debitar ideias. E pior: muito pretenso intelectual a debitar pesporrência. E no final sempre o mesmo resultado: a impotência, o suspiro dos vencidos.E depois a revolta. Não havia nada a fazer.
Em 2009 enfrentámos o problema.Não queríamos continuar a velar um moribundo á espera do golpe de misericórdia dado pelas intempéries ou pelo espinha dobrada dos vencidos, embora campeões do blábláblá. As élites culturais produzem estes subprodutos que são apenas o blábláblá. Pequeninos, mixordeiros, inutilmente opinativos mas blábláblá. Nem  uma acção. Apenas um blábláblá.
Foram três anos de trabalho intenso, de negociações complicadas - até com gritaria histérica e indignada pelo meio - pois ainda há quem se lembre da medalha de Sócrates e dos insultos e beatérios de galinhas cacarejantes a gritar sem perceber aquilo que estava por detrás desse episódio. Os reis do blábláblá quiseram trucidar o presidente da cãmara. Incapazes de perceber a cidade, ridiculos na forma como a pensa á dimensão do seu umbigo calculista, profundamente insensíveis face á memória da cidade e á sua monumentalidade, embora muitos dos bláblás batam penitencias no peito e amor ao património. Mas a caravana avançou! a requalificação realizou e S.Francisco é hoje uma jóia do país. Faltava tapar aquele buraco secular. Um buraco que era a degola do convento e um rasgão na beleza da cidade. E porquê esta teimosia com a rosácea? Sobretudo para dar unidade estética ao espaço público da cidade. Fui eleito para servir Santarém.Não foi para ficar de joelhos, inerte,amesquinhado perante o blábláblá. E lá foi colocada ontem á noite e agora, para quem tiver olhos para ler a cidade compreenderá essa coesão que começa naquela obra bela, grandiosa, renascida e se prolonga com coerencia e uniformemente pelos espaços públicos revitalizados. Não há contabilista de ocasião que não perceba que a cidade é maior que discursos obsessivos, não há noticiário mesquinho, daquele que procura apenas enxovalhar, enlamear e extorquir prebendas, que resista a este testemunho diário, vivido, visitado por milhares. Nunca a pequenez do bláblá submergiu uma cidade. Nem o tacticismo de grupinhos, facções e compadres.E de negociantes de ambições. A cidade agiganta-se desprezando o ruído e ergue-se formosa e bela. Agora ainda mais bela depois deste encontro com a história. E eu tenho o grande orgulho de lhe ter pertencido durante sete anos de paixão sem fim. Porque Santarém permitiu que eu lhe partilhasse a sua gloriosa imortalidade. 

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Um abraço á Selecção!

Não há grande euforia em torno da selecção. O resultado contra a Turquia mirrou entusiasmos. Os nossos heróis, de há umas semanas atrás, partiram para a Polónia sob o olhar desconfiado dos adeptos que não queriam assobiar nem refilar contra os mestres da bola. Contra o governo, contra a troyca, contra qualquer coisa, a malta está disposta a alinhar em protestos, indignações e inquisições várias. O futebol, e em particular a selecção, foi sempre o sonho de glória. Nunca percebi onde se sedimentava este sonho que alimenta o imaginário colectivo já que nunca ganhámos nenhum campeonato senior. Nem   Mundial, nem Europeu. Aliás, o único campeonato Europeu que tivémos mais á mão, aqui, no estádio da Luz, deixámo-lo fugir, vejam bem!, para os...gregos.
Enfim, sem grandes paixões nem grandes expectativas, desejo boa sorte á nossa selecção. Que pelo menos, marquem uns golinhos. Sei de abundantes arcas frigoríficas prenhas de cerveja á espera da celebração de um golito. Ao menos que a malta refresque a alma já que os sonhos da selecção ou acabaram em inesperados despertares ou em pesadelos. E, além disso, quer ganhe ou perca, a nossa esperança maior é que a troyca aprove o próximo empréstimo. Não traz grande alegria, é certo, mas sempre vai dando para a bucha.


sexta-feira, 1 de junho de 2012

Dia Internacional da Criança: Crianças Soldados

Esta imagem vem do Congo. Já não é recente. Não tenho a certeza se estas crianças ainda estão vivas ou se já morreram em combate. Também não sei em qual dos combates poderão ter morrido. Nem as causas por que lutam. Se é que sabem. Não sei. Elas também não devem saber. Só sei que esta fotografia não devia existir. Nem estas armas. Apenas os sete putos. E já agora com um sorriso. Um simples sorriso. Quem lhes ensinou as armas, não teve tempo para lhes ensinar um sorriso. É por isso que eu não sei em qual combate terão morrido. Pelo menos os sorrisos já morreram. Bom, mas hoje é o Dia Internacional da Criança. Devemos eleger a felicidade como desejo, a esperança de um bom caminho até à idade adulta como voto. faça-se de conta que esta fotografia não existe. É melhor, não é? Pois, é bem melhor. Ficamos mais sossegados. E em paz. Em paz????

segunda-feira, 28 de maio de 2012

ESTOU REFORMADO! Obrigado, Estado bondoso e lindo!


Esta manhã o correio chegou ao som de trompas, clarins, tambores e foguetório e tocou com alegria estridente à campainha da minha porta. Surpreendido com tão estridente cortejo.Não jogara no euromilhões, o dia de aniversário já passou, enfim, fui abrir, curioso e expectante. Não era o carteiro. Era o Estado. O próprio Estado em pessoa! Com a sua corte de funcionários, de corredores penumbrosos, de secretarias atulhadas em papéis, atapetado com soalhos que rangem e máquinas com números para senhas que ordenam os nossos lugares nas filas, das muitas filas, do nosso bem amado Estado. Era alvo o sorriso. Sempre o imaginei branco, com olheiras, com falta de sol na pele. O Estado nunca deixou de ser tuberculoso, mal encarado, com forças distorcidas, sem vigor, tipo fungo, mais capaz de se alimentar do húmus do que a criar vida, e foi desconfiado que recebi o seu sorriso esquálido, diria mesmo cadavérico com livores acentuados. Perguntei: Bom dia? e semicerrei  a porta quando respondeu forçando um riso desdentado: Bom dia. Sou o Estado!.
O meu patrão visitava-me. Meu patrão há mais de quarenta anos e eu nunca lhe vira o rosto. Era sempre uma omnipresença por detrás de milhões de rostos que ao longo desta imensa vida a dois me pôs na condição de servo e, Ele, na condição de Senhor.
- Venho trazer-lhe o papel. Está reformado. Voltou-se para a multidão que se acotovelava, músicos, burocratas, muitos servos e um exército de assessores, agitou o braço descarnado e gritou:
-   O fotógrafo! O fotógrafo! - e, de repente, no meio da assuada, disparou uma flash: Eu, o papel e o Estado, todos sorrindo para a fotografia. Apertou-me a mão com a sua mão cadavérica, entregou o papel e o flash repetiu-se para fixar aquele momento solene. Aplausos. A música regressou, a algazarra empolou e o Estado perguntou:
- Não nos convida para entrar?
E tomei a minha primeira decisão de reformado:
- Não. Na minha casa só entra gente que considero de boa fé. Vamo-nos vendo pelas repartições.
Espantosamente não amuou. Percebi, depois, que era a resposta vulgar que recebia em cada casa onde levava o tão desejado papel e retirou-se sem cumprimentar ao som de cornetas, trompas e gritos anémicos.  Fechei a porta e olhei com tempo o papel que o Estado me dera. A reforma! Exactamente 41 anos e 9 dias depois, recebi a minha carta de alforria. Livre! Um escravo liberto com direito a pensão que o meu Senhor me paga até que a morte me venha buscar. Também a pensão de sobrevivência que os meus descendentes vão receber quando eu fechar os olhos. O meu doce e terno Estado cuida de mim e de mim, depois da morte, se os meus descendentes sobreviverem ao meu decesso. Mais do que a reforma estou encantado com a pensão de sobrevivência. 600 euros para assegurar a minha imortalidade.  Agora sou um escravo liberto. Há mais ou menos uma hora. Ainda nem sei o que vou fazer com este sol de Liberdade. Acho que hoje vou comer um bife. Sim, a reforma não dá para muito mas dá para um bife. Com ovo e tudo. Quero celebrar a minha entrada na 3ª idade. Vou ler a Bola, palitar os dentes, e ficar o resto do dia no jardim. Enquanto houver sol.
Mas só hoje que eu percebi a ironia desta reforma acompanhada da pensão de sobrevivência. Desta festa surpresa feita de fantasmas e cadáveres adiados, liderada por este Estado moribundo e vampiresco.
- Agora já podes não fazer nada e descansar á sombra do teu carvalho de estimação!, era o convite insinuado na oferta do papel sagrado. - Desiste, a tua vida chegou ao fim, desiste! sussurrava o coro desafinado dos assessores. - Até já tens garantida a pensão de sobrevivência para os teus e o funeral.
Vai enganar-se, vou enganá-lo. Hoje como o bife com ovo a cavalo para celebrar o tempo vivido em que tantas vezes comi o pão que o Diabo amassou ao serviço do meu Senhor.
Amanhã levanto-me cedo e vou começar a Vida. A verdadeira Vida. A Morte e a sobrevivência não estão na minha agenda de Reformado e mal pago. Ah, e vou comprar uma moldura para colocar o papel. Não sei por quanto tempo posso comemorar. Não sei se a Troyka, a minha querida, adorada e santa Troyka me vai ajudar e vou ter Estado amanhã. Basta o velho descarnado entrar em bancarrota e lá se vai reforma e muito mais depressa a sobrevivência. Mas para já, vou comemorar e arranjar a moldura. Acendo duas velinhas e coloco a oração de Santa Bárbara para afastar trovoadas. Ai, o bife. Este bife vai saber-me a mel.