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sexta-feira, 11 de abril de 2014

Cansado dos Velhos do Restelo




Leio, com alguma amargura, gente que ao longo de décadas escutei com respeito e com atenção, que parece de um momento para o outro ter ensandecido. Gente que como eu, da minha geração,que foram testemunhas intensas do 25 de Abril, que trazemos memória vincadas do anterior regime e que tivémos a  ventura de criar e educar os nossos filhos num regime democrático.
Fico espantado com os lugares comuns do medo. Do ressabiamento. Na aparência da escrita defendendo o 'espirito do 25 de Abril'. Na substância, insultando esse tempo, ao compará-lo com os tempos que vivemos hoje. É, na minha opinião, um absurdo, a negação da História, a intrujice palavrosa em nome da guerrilha política, nos termos medíocres que a guerrilha política implica.
Lembrando Fernando Pessoa(Álvaro de Campos), em 1974, era ainda o tempo em que eu fazia anos. Hoje, apenas duro. Passaram quarenta anos. Feitos de tão grandes feitos e de tão grandes disparates, de tanta alegria e de tantas mágoas que nos tornámos velhos. Muitos são velhos, com o mesmo coração feito de madrugadas inteiras e limpas que cantava Sophia. Outros, magoados, porque mais do que a derrota do 25 de Abril, vivem da saudade do tempo em que faziam anos. São os velhos do Restelo. A maior parte deles enroupando a boina do Che e a exibição de uma erudição feita de fantasmas. Deixaram de ser revolucionários. Passaram ao estatuto de revoltados.
Não esquecer, obrigar-nos ao exercício sério da memória, obriga a repudiar com alguma repugnância essas (impossíveis) comparações entre o tempo em que duramos e o tempo em que fazíamos anos.
Deixo aqui, de forma breve, o testemunho da (des)comparação como protesto contra os Velhos do Restelo, paradoxalmente encarnados em homens e mulheres que procuram desencantar esse dia de todas as esperanças.
No tempo em que eu fazia anos, o meu país morria jovem. Numa guerra brutal, em África, com o Vera Cruz e o Santa Maria carregando para o Ultramar milhares de jovens que não sabiam se voltavam ou não. Quem esteve nos cais do Tejo nas partidas desses navios de tropas tem marcada essa dor para sempre. As lágrimas, os prantos, os lenços brancos, as mães e a mulheres que ficavam chocadas de medo por ser aquele, talvez, o último dia do último abraço. E foi assim durante quase catorze anos e o Zeca cantava 'menina dos olhos tristes/ o que tanto a faz chorar?/ o soldadinho não volta/ do outro lado do mar.
No tempo em que eu fazia anos cantar esta cantiga era proibido. Era proibido cantar qualquer cantiga. Cantava-se aquilo que o Regime impunha. Cantava-se às escondidas a Liberdade.
No tempo em que eu fazia anos havia livros proibidos. Milhares de autores interditos. Entre eles, nomes maiores da Literatura portuguesa.
No tempo em que eu fazia anos, havia prisões repletas de presos políticos. Caxias, Peniche, antes destas o Limoeiro, o Aljube, o Tarrafal, entre outras.
No tempo em que eu fazia anos, a emigração era a salto, para a beterraba em França, ilegal, a pé com a Guarda Fiscal de arma em punho a perseguir quem fugia à fome. Nesse tempo, as mesmas redes passavam milhares de exilados, gente que sonhava a Liberdade num país onde era proibido cantar, pensar, ler, estudar.
No tempo em que eu fazia anos, as poucas livrarias eram uma em duas. A legal e pública cheia de livrinhos cor de rosa e a das traseiras, onde se escondiam Aquilino, Soeiro Pereira Gomes, Pablo Neruda, Alves Redol e uma legião de escritores amaldiçoados pelo regime.
No tempo em que fazia anos, a pobreza não tinha contrato e abrasava os campos. E as greves e manifestações eram proibidas. Apenas aquelas que saudavam o regime tinham direito a expressar-se.
No tempo em que eu fazia anos, ir de Lisboa ao Porto era a Odisseia de Homero. Atravessar o país por estradas herdadas do fontismo, coisa de heróis.
No tempo em que eu fazia anos, a corrupção era institucionalizada pela política de monopólios. Os donos e apoiantes do regime tinham essa regalia. E aceite como importante.E os sindicatos eram corporativos. Aceites como voz submissa.
No tempo em que fazia anos, havia meio milhão de alcoólicos e sessenta por cento de analfabetos. Nesse tempo as quatro ou cinco universidade que existiam, estava ali para servir os abastados e não para servir que desejasse sonhar o futuro.
No tempo em que fazia anos, falava-se a uma só voz. Era proibido contraditar a política. Quem o fizesse via os seus artigos censurados, via a sua voz calada pelos esbirros da polícia política. E se não eram presos, eram assassinados.
 
Não quero e não preciso mais de lembrar esse tempo de medo. Embora tenha saudades. Saudades do tempo em que a idade me permitia fazer anos.
Hoje vivemos a anos-luz desse tempo da paz podre dos cemitérios. Vivemos uma crise profunda onde os valores da cidadania têm dificuldade em se realizar. Vivemos tempos medonhos de fome e desemprego. Vivemos com a dependência da ajuda externa. Vivemos com gente de pouca ou nenhuma qualidade na política, na economia, na construção do futuro. De profusão de pulhas. Que agora conhecemos porque a liberdade de imprensa nos dá deles notícias. Antigamente não os conhecíamos porque os jornais estavam proibidos deles darem notícias. Vivemos um tempo ruim, é certo. Um tempo marcado pela mediocridade, é verdade. Desgraçadamente uma mediocridade que é transversal e não deixa rasto de génio. Mas nada disto é comparável com o tempo que eu fazia anos.
Não só é absurdo quando se evoca o 25 de Abril como é um insulto a esse tempo em que o país recusou o tempo em que eu fazia anos.
Vou celebrar o 25 de Abril com a mesma alegria desse dia fundador. Com o mesmo cravo feito de sonhos dentro do peito. Vou celebrá-lo, não desistindo. Convencido que este tempo em que duramos vai terminar em dia e hora que desconhecemos. Vou celebrá-lo sem lamento nem fatalismo. Porque celebro o tempo em que ainda fazia anos e a permissão que Abril nos entregou para sonhar com a Liberdade infinita, o futuro daqueles que amo e do meu País. Eu sei que é um sonho. A culpa é do António Gedeão. Convenceu-me que o sonho comanda a Vida.