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segunda-feira, 15 de outubro de 2012

UMA NOVA AMBIÇÃO (III)

As grande rupturas culturais e civilizacionais (as verdadeiras revoluções no sentido de transformação profunda e radical) não se produzem com um estalar de dedos, nem com mais ou menos manifestações. Nem com mais ou menos reformas. Nem com mais ou menos austeridade. Tudo isto são expressões materiais e políticas de gestão problemas que afloram e necessitam de pensos e remédios, válvulas de escape e catarse colectiva, para reequilibrar formalmente os modelos em que se teima em acreditar. Aquilo a que hoje assistimos sob os mais intensos holofotes - acordos com a troyca, protestos, políticas orçamentais restritivas, indiferença ao desemprego, e por esta via ao valor do trabalho, ausência de investimento, e por esta via ao adiamento de adaptação aos novos tempos por parte dos empresários - fazem parte do mesmo puzzle de raciocínio e acção. Porém, deve dizer-se que são inegáveis os sinais de degradação e decadência em todas as áreas da produção de poder, seja ideológico, seja programático, seja nos domínios mais instrumentais como é o caso dos sindicatos, dos partidos, da associações de empresários, todos mais preocupados com o efémero (projectos para um, dois anos) do que estratégias de longo prazo. 
Veja-se como exemplo de degradação ideológica o Partido Comunista. Do seu léxico formal, das grandes narrativas públicas, há muito que saíram expressões como 'classe operária', 'camponeses pobres', os 'soldados e marinheiros'. Hoje domina e determina a narrativa a palavra 'trabalhadores', conceito genérico e abrangente, ambíguo, sem categorias identificadas, cabendo aí tudo e todos. Parece um problema menor mas não o é. É substancial. Quem ler os textos marxistas e leninistas, assim como as teses dos Congressos comunistas, sabe que a crença na revolução proletária, assenta na liderança da classe operária (cuja vanguarda é o Partido) na luta de classes contra o capital e os detentores do poder que o suporta. É certo que esta convicção não se perdeu no discurso comunista. O derrube do regime é a finalidade última da sua acção política com a emergência de uma sociedade socialista como existiu nos países de Leste. Porém, a deriva semântica, esconde a falência da crença e a incompreensão de uma realidade, corrigida hábilmente pelo conceito de 'trabalhadores'. A ruína dos campos e a dissolução de um denso tecido de camponeses por um lado, as alterações profundas nos processos de trabalho do operariado 'contaminados' pela democratização das novas tecnologias que os diferenciou, perdendo-se o sentido de massas de mão de obra explorada, no sentido que se vê relatado nos livros de Dickens, surgindo grupos cada vez maiores de 'aristocratas' , com forte poder de compra, graças ao domínio de competência técnicas que os arrancam ao domínio das 'vítimas da fome' e dos 'famélicos' da Terra.
Dou este exemplo mas poderíamos continuar por aí com os outros partidos. A social democracia do PSD ou o socialismo do PS não resistem á confrontação com os seus pressupostos ideológicos tendo em conta os seus discursos dominantes.
Não creio que estes anacronismos tenham a ver com o tal populismo simplista, analfabeto e vulgar que resulta da desorientação popular face ás diferentes narrativas e remete a política e os políticos para a singularidade insultuosa de que 'eles são todos iguais'. Seria mais rigoroso gritar 'Eles estão todos desorientados'. Sobretudo perderam o sentido essencial da política que é gerir o direito sagrado á Esperança. Quer a Situação quer a Oposição não conseguem construir um objectivo que entregue a necessidade e fomente o direito de acreditar que o futuro não é apenas sofrimento. Não é por maldade. É porque o mundo que representam, e sobre o qual modelam os discursos, já não é aquele que, na verdade, está aí a exigir uma Nova Ambição.
A Escola
O ranking das escolas e os becos sem saídas dos estudantes, o brutal desemprego de professores, o excesso de produção de 'doutores', a modelagem de um sistema de ensino que vive da massificação (e ainda bem) mas que é indiferente ao rigor, á competitvidade, a indiferença curricular com os grandes acontecimentos históricos que mudam os nossos quotidianos, o desprezo pelos valores de identidade nacional e cidadania, o afastamento dos pais (por auto e por hetero-exclusão) do processo educativo, faz alastrar esta mancha enorme de mão de obra pouco qualificada, sem destino prevísivel, apta a integrar o imenso exército de desempregados, pouco qualificada para os desafios ausentes das expectativas políticas geradas mas omnipresentes na realidade que vai fazer frente a esses alunos.
Talvez nunca tanto como hoje se trabalhe na escola. Tenho uma filha de 14 anos e sei a carga de trabalho que a sufoca. Para garantir competências diferenciadas dez a doze horas da sua vida estão agarradas á actividade escolar. 
Na idade da formação das identidades individuais é tão importante estudar a matéria académica como brincar, entendendo-se o brincar como processo de socialização e de construção psico-afectiva do mundo social da criança. Nunca como hoje, é necessário repensar a ideia de tempo livre, que as conhecidas e rotineiras 'AEC's' e outras propostas mais ou menos idênticas não privilegiam. E, sobretudo, como prioridade das prioridades é urgente definir um programa, ou vários programas educativos, onde quem nos governa tem de saber o que quer das nossas crianças daqui por cinco, dez anos, vinte anos, oferecendo escolhas de decisão para futuros adequados, longe desta produção, a raiar o imbecil, de professores, doutores e engenheiros que mergulham no desemprego mais desesperado. 
Qualquer reforma no ensino tem que obrigatóriamente inscrever expectativas de futuro produtivo. Seja em qual for a área de trabalho. Ou seja, valorizando o trabalho em vez de titulaturas. Entregando ao trabalho privilégios que provoquem o prazer de estudar e de trabalhar. Exaltando e protegendo o valor do trabalho como o verdadeiro motor da competitividade, do crescimento, da produção da riqueza. Julgo mesmo que todas as actividades relacionadas com o trabalho e a valorização das empresas deveriam ser afastadas das algemas fiscais, pois aqui reside o único caminho por onde Portugal pode sair desta complexa crise: formar com rigor, educar com rigor, adaptar o ensino e a educação ás exigências das revoluções invisiveis, á exigência de conhecimento dos direitos de cidadania articulados com os direitos da Terra, orientando políticas fiscais para quem tenha necessidade de limitar estes direitos. Julgo mesmo que o consumismo é a doença maior deste descontrolo. A ideologia do excesso inútil. Intervir fiscalmente nos consumos, tornando as receitas do Estado uma fonte de exemplaridade cívica e de justiça é um caminho que não pode deixar de ser caminhado. Mas sobre isto, falaremos depois.
(continua) 

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Uma Nova Ambição (II)

Urge alterar o programa do nosso futuro colectivo. As receitas que diariamente são sugeridas não correspondem aos grandes desafios que a História nos reserva. Como referi no artigo anterior, estamos a ser actores e testemunhas de um tempo único, eventualmente a vivermos a maior revolução depois da revolução industrial. Os profundos avanços e descobertas quer nos domínios da microbiologia e da bioquímica e, sobretudo, na área da engenharia de sistemas com rapidíssimas mutações no mundo da cibernética, têm provocado alterações radicais nas nossas formas de entender o mundo, as nossas relações com a Vida, com o nosso planeta, com os outros. A revolução informática alterou decisivamente as nossas coordenadas vitais: acelerou o tempo e encurtou o espaço. Durante séculos, muitos séculos (até ao sec. XIX) o tempo e o espaço tinham medidas subjectivas de interpretação do mundo marcadas  pela lentidão e pelo limite. Como sublinha Georges Duby, para o homem medieval, o tempo tinha a cadência dos sinais de oração emitidos pelo sino das igrejas e o espaço tinha como limite o seu horizonte visual. Este microcosmo fechado, imutável, lento marcou séculos de vida comum e, efectivamente, pesem os avanços decorrentes da multiplicação de viagens e de continentes, de caminhos marítimos e terrestres, só durante o séc. XIX, com a emergências das novas cidades, o incremento industrial que potenciou a máquina a vapor, o comboio e a via férrea, assim como a democratização do relógio, surgiram as mais decisivas rupturas nestas ideações essenciais para a interpretação do real. O tempo acelerou até á velocidade da hora e do minuto, o mundo começou a encurtar graças ás políticas de fomento no domínio dos transportes. Quem ler trechos de Eça de Queirós, quer no artigo o 'Francesismo' ou no In memoriam a Anthero de Quental, sob o título 'Um génio que era um Santo', perceberá como este grande prosador oitocentista captava estas alterações profundas quando descrevia a ânsia com que a academia coimbrã corria á estação do comboio á espera que chegassem as novas ideias que, ao tempo, traziam Hegel e Saint Simon, Proudhon e Comte, Littré e Hartmann, entre muitos.
Desde então, e apenas durante um século, não mais parou essa utopia transcendente, quase frenética, de aceleração do tempo e encurtamento do espaço. Em todos os domínios da actividade. Desde a produção industrial  (bem ilustrada no filme Os Tempos Modernos de Chaplin) até ás mais inusitadas formas de interagir com o quotidiano. O avião, o foguetão, a televisão, a panela de pressão, o micro-ondas, o 'fast-food', o novo urbanismo e as novas construções, o telemóvel, o ipad, a medicação, as técnicas médico-cirurgicas, os conceitos de saúde, de assistência, de educação têm vindo a ser formatados por forma a criar a ideia de que é possível controlar a Vida, segurá-la, vivê-la e assegurá-la, iludindo a omnipresença da Morte, negando-a, escondendo-a e, com esta estratégia, ignorando que é exactamente a consciência da finitude que forja as dimensões ética e moral onde assentam os pilares estruturantes da dignidade e da existência humana. O computador tornou-se no rei absoluto das nossas relações e memórias. Talvez não seja por acaso que o seu dispositivo de arquivamento se chama 'Memória ram' como se fosse o prolongamento da nossa própria memória ou, até, o seu substituto. A internet precipitou tudo. Deixou de haver espaço e tempo. Tudo se resume ao instante do 'enter' e ao sítio que queremos visitar. Esta realidade tão objectiva, tão dentro de nós e da nossa casa, dissimula o efeito perverso que este optimismo existencial encerra: é que na verdade tudo se resume a uma imagem, ou a uma sucessão de imagens, á construção de narrativas assentes em algoritmos que têm o seu eixo fundador num simples binário que fabrica representações simbólicas sobre a racionalidade, num quadro logicista, que não reproduz a dimensão afectiva ligada ao Viver e ao Morrer. Um computador pode representar o amor de milhares de formas mas jamais poderá amar. Jamais poderá rir ou chorar. É o nosso substituto omnipresente e a metáfora maior sobre as actuais narrativas políticas, económicas e sociais. Radicalmente lógicas, exacerbadamente racionalistas, efusivamente eruditas no planeamento e na estratégia, mas que não passam de uma imagem virtual sobre o mundo dos objectos, dos projetos, dos sonhos, dos desejos, da ternura, da amizade, do amor e, também, do ódio,da ira e de todas as pulsões que nos determinam enquanto seres humanos e cidadãos. Como sublinha Edgar Morin, somos muito mais entropia do que lei, somos muitos mais contradição do que norma. Somos muito mais, como escrevia António Botto, 'arquitectos do sonho e da ilusão', expectantes e actores que idealizam projectos e futuros, que geram filhos e os amam, crendo que o futuro vai para além do nosso próprio fim e que, por vias diferentes, procura antropologicamente a mesma coisa para os filhos: que possam ser felizes até ao dia e hora decisivo que desconhecemos mas que todos temos de viver. E de morrer. 
Perante esta constatação, percebendo por outro lado que os velhos paradigmas resultantes da revolução industrial, e das suas múltiplas consequências, estão a chegar ao fim, com restrições no consumo, com as alterações dos mitos do prazer e da riqueza, com o transtorno social resultante dos desastres económicos, pela incapacidade do discurso político para reactualizar o seu objecto novo e mais complexo, é necessária uma Nova Ambição que olhe sem preconceito e, sobretudo, sem medo o mundo que irrompe nesta nova Idade que surge perante os nossos olhos. Um Nova Ambição que é, antes do mais, um Novo Desafio ás nossas condutas e expectativas face á rápida pauperização, envelhecimento, ausência de caminhos em que mergulha o nosso país e o espaço europeu. Não deixa de ser paradoxal que no momento da maior explosão revolucionária dos últimos séculos, o espaço e o tempo em que vivemos seja caracterizado pela degradação e pela decadência. Pela reprodução de uma sociedade de velhos, pela multiplicação de lares e diminuição de escolas, pelo fecho de maternidades e alargamento de cemitérios. Não deixa de ser paradoxal que mesmo dentro do nosso país, existam vários países. Aquele em desmoronamento, em ruínas, quase desértico, que com raras excepções se transformou o Portugal rural, do interior, cheio de resquícios do país tardiamente medieval tão bem retratado por Vitorino Magalhães Godinho e o país litoral, metropolitano, competitivo, mas sem meta, transtornado e dilacerado pelas múltiplas crises que se cruzam no interior desta revolução, com faíscas de relâmpagos no meio de uma imensa trovoada.
Uma Nova Ambição que rompa com narrativas cansadas, cultivadoras do lugar comum, assente no impropério, no rodriguinho verbal e que tenha nesse casamento fundador da nossa existência, entre a razão e o afecto, o motor maior da construção de uma nova comunidade, de novos espaços e de novos tempos. Uma Nova Ambição que recupere a participação e a exaltação da cidadania culta , armada de novos saberes, retomada pela inquietação do conhecer, apostando na criatividade, na inteligência, na produção de afectos ( e de alegria) como forma sustentada de construir. Uma Nova Ambição liberta do espartilho egoísta, assente nos valores fundadores da prática democrática e na cultura democrática onde a procura da Igualdade excita e tolera a diferença; onde ser diferente não inibe o sentido de Fraternidade; onde colectivamente criadores, e libertos da sobranceria e da intolerância, poderemos sonhar, sonhos de carne e osso, com pernas e coração, que nos empurram para o ideário da Liberdade. Este mundo novo que se abre com esta nova idade necessita desta nova ambição. Que reconhece a impossibilidade de segurar o tempo. Que reconhece a impossibilidade de apreender todo o espaço globalizado em que vivemos. mas que os consegue interpretar á luz dos novos instrumentos de avaliação, inscritos numa memória de cidadania activa, que não desiste nem recusa a dimensão humanista da acção política, económica e social. 
(continua) 

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Uma Nova Ambição (I)

Não me sai da cabeça as comemorações do 5 de Outubro. No seu conjunto são um terrível metáfora sobre o estado do país. A bandeira hasteada em submissão, as cerimónias cercadas por grades, as ditas esquerdas (nas quais o PC não se fez representar) enfiadas num anfiteatro repetindo os lugares comuns de sempre, o primeiro ministro ausente no estrangeiro, a indiferença popular, fez com que este dia, que devia ser de comemoração, se tornasse numa liturgia de finados, sem energia, cabisbaixa, não cumprindo a sua função legitimadora e congregadora de vontades. Foi um velório na Câmara Municipal com as carpideiras aos gritos revolucionários numa outra sala com gente desorientada que contesta o governo e a única proposta, mais sonora que a oposição devolveu, foi a promessa que o 5 de Outubro vai voltar a ser feriado. Para quê? Pergunto eu, depois deste fiasco colectivo? Para aumentar a amargura e o desespero? Para alimentar a política do lugar comum, das fórmulas académicas, teoricamente eruditas, mas tão desastradas que empurram as populações para a fome, para o desemprego e para a miséria sem que haja um único sinal de investimento na economia? Para quê? Para que a 'rua' comande os passos, sem direcção política, sem objectivos de construção, sem um único caminho de esperança, transformando-nos num imenso grito de protesto, condicionando uma ou outra política, mas sem um plano, um objectivo positivo para o país? 
Aquilo que o 5 de Outubro sintetizou de forma perfeita foi a exibição do poder republicano numa fase avançada de decadência, aviltante para a memória dos seus maiores heróis (políticos, poetas, escritores, obreiros de todas as artes) e de desesperança para quem aqui vive, trabalha, educa os filhos e ama a sua terra sem conseguir dar um sentido mais amplo ás suas expectativas existenciais.Esta decadência não traz mais futuro que não seja mais decadência. Não traz esperança, o motor essencial da confiança nos homens e na Vida. Não traz alegria, o perfume decisivo para que os projectos ganhem força. Não traz nem mais investimento, nem mais trabalho, molas essenciais para projectar o futuro. Não traz mais nada a não ser lamentos, protestos, sementeiras de ódio e desprezo, lugares de histerismos e erros, onde as ruas e as praças são cada vez menos de quem procura viver e transformam em grades, polícias, separadores redutores da nossa vida comum. 
Uns acreditam na troyka. Outros acreditam que é contra a troyka. Muitos acham que esta perda de soberania serve especuladores sem escrúpulos, arruína (ainda mais) o país, outros consideram que é este empobrecimento rápido e brutal que nos vai mostrar as portas de Jerusalém Celeste.No fundo, a lógica dos prós e dos contra é a mesma. Tão idênticos nos apoios e nos protestos, no que respeita ao futuro, que nos leva a recordar Guerra Junqueiro, tão vazios, tão ocos, tão sem ideias, tão iguais com as duas metades do mesmo zero.
O que este 5 de Outubro revelou é que estamos num beco. A alternativa á miséria, é mais miséria. A alternativa para a desconfiança, é mais desconfiança. A pescadinha não solta o rabo da boca e este ciclo infernal não tem fim, ou pior, pode ter o mais desgraçado dos fins, diminuindo Portugal, humilhando-o, deixando-nos presos aos mais trágicos dos desesperos.
Ao longo da minha vida, passei por vários lugares do mundo e do trabalho. Os últimos sete anos, tinha 52 quando me iniciei nas actividades políticamente activas, à frente de uma autarquia à altura degradada e sem auto-estima, permitiu-me perceber muitos dos erros que se replicam no todo nacional, que ferem de morte a política central, que inibem novos olhares, novas abordagens, o medo a novos desafios, fora da lógica que durante décadas se foi instalando e fazendo com que o poder mirrasse, por excesso de atavismo, que se tornasse numa máquina que de tanto procurar, e se confortar, na crença da racionalidade produziu a decadência política e moral em que hoje nos debatemos. Somos herdeiros de uma pesada e terrível herança neste domínio. Estamos habitados pela ideia de uma sociedade dividida em Blocos. Uma ideia antiga, surgida nos Estados Gerais durante a Revolução Francesa, mas que a filosofia positivista, nas suas mais variadas projecções no mundo da política, no mundo social e no mundo académico, radicalizou e tornou definitivas. Ou pelo menos, dominantes e determinantes até aos dias de hoje. Esse pensar velho e modelado ignorou as profundas transformações que ao longo do séc. XX, e agora no início deste século, modificaram por completo as formas de pensar, de agir, de entender o mundo, a necessidade de o reorganizar face a alterações estruturais que  não são compatíveis, que se escapam, aos instituintes de controlo social, económico e político que as tradicionais formas de apropriação do poder reclamaram como suas.
As revoluções invísiveis, de longa duração, imperceptíveis, mas que se introduzem rápidamente nos hábitos, quotidianos, conhecimentos e saberes provocaram uma ruína quase irresolúvel nos discursos retóricos, racionalizados, organizados, carregados de falsas expectativas porque na verdade falam e narram o irreal e não a realidade. É esse discurso sobre as aparências que não compreende o país (dantes ouvia-se o jargão do 'país real') que está a viver, assim como o resto do mundo, profundas transformações no que respeita á cibernética, ao ambiente, a revaloração dos direitos civis, á exigência de direitos que o próprio planeta reclama. Passou-lhes ao lado, merecendo uma atenção meramente colateral, novos processos de afirmação como os direitos das mulheres, os direitos das crianças, a rápida transformação das mentalidades dos mais jovens que nasceram com a internet na sua genética, a aceleração do tempo e o encurtamento do espaço, enquanto coordenadas fundamentais da nossa memória e vida, ignoraram as alterações nas estruturas de produção, nas estruturas do saber e do conhecer e, agora, atónitos perante um mundo desconhecido, teimam nas fórmulas clássicas, ignorantes, atávicos, já incapazes de entender um país que exige novos desafios e, acima de tudo, exige uma nova ambição.
 

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

São três da manhã e o sono não chega. Á solidão tranquila do meu quarto chega o trinado dos rouxinois que, suspeito, solidários com a melancolia que me perturba o sono e me impõe a insónia e me fazem pressentir Florbela Espanca neste Alentejo orvalhado, e já friorento, que entra pelas frinchas das janelas.Dou comigo a recordar a República, e ela toda romântica nos olhos do meu avô António.Soldado brioso da Rotunda que afrontava as tropas de Paiva Couceiro e recitava esse dia como o mais completo e total da sua vida, depois de caminho andado, com os netos em volta, recriando a história desse parto, a menina dos seus olhos, pela qual lutara e se dispusera á morte sem ao menos ter disparado uma bala. Meu querido Avô António, esse teu olhar menino, mesmo quando já as rugas te acentuavam as expressões do próprio riso, que me entregaste com essas histórias de encantar a certeza, igual á tua paixão, de que naquele tempo, pardal de calção e sapatos rasgados dos desafios de futebol, a República era seguramente o primeiro lugar onde os homens habitam já muito perto do Céu bem perto do abraço fraterno a Grande Arquitecto construtor de Universos, de Vidas e de Sonhos. Foi necessário passarem muitos anos, desde essas noites de contas, noites iguais a esta, em que nos sentávamos à tua volta, ao porta de casa, ao fresco da noite escutando-te enquanto olhávamos as estrelas decifrando na escuridão os caminhos que a Republica nos abria entre o manto luminoso da Estrada de Santiago.
Enamorei-me aí. Servir a República, servir a tua história tão generosa e pueril, comandada pelo heróico Machado dos Santos, pejada de carbonários barbudos armados e barbudos, de marinheiros e soldados, também eles barbudos, de maçons, igualmente barbudos, tornou-se na obsessão de uma vida.Os teus contos rasgaram os sulco por onde caminhei, sonhando dar a vida por ela, que pelos amores ninguém mata, mas por amor não nos importamos de morrer..
Há muitos anos que não sei de ti, Avô. Partiste naquele inverno friorento, já lá vão 39 anos, e durante estes 39 anos, não se passou um único deles, que nesta noite não tivesse celebrado a tua aventura estranha, indo espreitar as estrelas do céu, talvez á espera de te reencontrar, sorriso menino num olhar de velho, que amava a sua República (que tenho admitir não saberes explicar bem o que era isso mas que desculpava porque era tempo de Ditadura e Salazar odiava a República do povo) como se embala nos braços o filho que acaba de nascer.
Esta noite as lembranças, a tua lembrança ingénua, chega-me parda e inquieta. Nem o murmúrio dos rouxinóis apazigua esta inquietação. E não festejo. Prefiro o silêncio ao turbilhão de alvíssaras, pois quando estamos magoados, não apetece escutar nem foguetes nem raivas ensandecidas pelo desespero. E continuo a amar-te como no primeiro dia em que vi, imaginada nas palavras do meu doce e saudoso Avô António. Tinhas o queixo alto e o busto exuberante, sensual, era mais forte que a coroa de louros que te iluminava o rosto. Minha eterna heroína. Meu definitivo desejo e amor acima de todos os amores fugazes. Mãe dos meus filhos e dos teus filhos. Promessa de fartura e paz, de liberdade e justiça, de fraternidade a rodos, e fartura pelas ruas e pelas casas de toda a gente. E esta noite, que se tornou numa noite tensa e magoada, não me liberto do fardo de saber que há mesma hora, por esse país imenso de generosidade, mirram alegrias e sustentos, mirram sonhos, Avô, o melhor alimento que recebi dos teus contos. Jurei servi-la, servindo-lhe a Vida.E sempre julguei que quanto mais a servisse, melhor seria a sua dádiva. Porque ao contrário de ti, tornei-me franciscano e crente absoluto de uma prática de vida que acredita piamente que é dando, que se recebe, que é amando, que se é amado, que é procurando compreender que se é compreendido. E hoje, 112 anos depois, escuto o silêncio da noite, e os doces rouxinóis que vieram até perto da minha cama cantar a ternura, e tempo que os teus sonhos, os meus sonhos, os sonhos de muita gente que juraram a procura da Igualdade, da Fraternidade e da Liberdade estão desfeitos ou em pesadelos de pranto, amanhã despertos sem que a palavra Esperança lhe habite o coração. Por ela dei-me todo, sem nada esperar em troca que não fosse o beijo liberto com que, depois das histórias dessa noite, nos sussuravas: Está na hora de ir para a cama. E aqui estou a escrever-te, no dia dos 112 anos, duvidando do teu sorriso menino, dos encantamentos desses caminhos mágicos que ela prometia, alegre e viva. Murchou. Transformou o amor em ira. Deixou que os homens, mesmo aqueles que regularmente juram fidelidade á Liberdade, á Igualdade e á Fraternidade vomitar obscenidades que, eu sei, ó se sei, que falam de medos e esquecem desiludidos a coragem de resistir.
Daqui a pouco vai amanhecer. Vão cumprir-se o ritos evocativos, com discursos e hino. Mas,apesar de tudo, desta mágoa tão grande, neste mar de gente em desespero, deste mar de sofrimento por onde navegamos, da minha própria mágoa e insónia, eu quero dizer-te Avô. E dizer ao Avô Francisco que por certo andará contigo  pelos céus, querendo saber dos netos, que acredito nos teus contos meninos. E que apesar destes dias ruins, de tempestade sem norte, eu vou esperar por ela. E por ela lutarei com a coragem que os dois me ensinaram. Agora que cada vez me aproximo mais do sítio de onde me olham, não sou capaz de mudar e sei que algures, por momentos adormecida, por momentos irada, está essa paixão, esse amor maior do que a própria Vida, que fala de memória e afectos, e continuarei resistindo. Servindo-a. Por ela resistindo e amando e entregando cada acto, todos os actos, desta já vivida existência que sempre trouxe no bojo, esta paixão nunca tardia de almas gémeas, e bem sei que só com essa paixão desprendida que tudo perdoa e das cinzas se refaz, como a Fénix, em possível pegar em cada pedra bruta e a golpes de vontade torná-la polida e bela, exactamente como são os sonhos.  Os rouxinóis calaram-se e escuto ao longe um dos meus rafeiros que ladra á lua. Talvez saúde a República. Eu planeio o dia em que lhe arrancaremos os farrapos andrajosos de tanta miséria e lhe daremos camisa de linho, alva e perfumada, que não lhe esconda o busto generoso, mas que lhe entregue o sorriso menino com que nos ensinaste a amar. A amar a nossa Republica!

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Quando os Monstros Acordam nos Caixões

Neste tempo de turbulência política e social, quando explode a desconfiança, quando as cargas de sofrimento levam os homens ás mais desencontradas emoções, serpenteiam pelo caldo de angústias as mais perversas das seduções, verdadeiros cânticos de sereia chamando os destrambelhados para um cativeiro de sereias assassinas, clamando os mais sinistros destinos e propósitos. Estar contra projecta-se muitas vezes numa ideação da representação social disforme que apela a que estejamos contra sem sabermos, a maioria das vezes para onde queremos ir e quais os projectos de que se está a favor. 
Vem isto a propósito de um apelo que circula nas redes sociais, assinado por um autodesignado movimento anti-partidário que confunde com primarismo boçal a liberdade que a Liberdade lhe entrega com o ataque mais violento contra ela. Agora pede a quem o escute que no próximo dia 5 de Outubro, haja uma invasão da Assembleia da República. Não sei para quê. Percebe-se que é contra os partidos. Mas não são claro quanto áquilo que querem ou são a favor.
Sou independente. Faço parte de uma geração que deu aos portugueses a possibilidade de viverem em Liberdade, de cada um escolher o seu próprio caminho, sem medo, sem mordaças, sem receio de estar a favor ou contra. Faço parte de uma geração que foi censurada porque estava contra. Que foi presa porque estava contra. Que foi obrigada ao exílio porque estava contra. Faço parte desse tempo em que havia cantigas proibidas, livros proibidos, ideias proibidas, de mulheres proibidas, sem direitos nem reconhecimento, tempo cinzento e pardo em que a guerra levava os melhores, em que a Justiça era conspurcada pelos tribunais plenários e pelas tristemente célebres medidas de segurança que metiam na cadeia, anos sem fim, sem julgamento, pessoas que apenas pensavam diferente.
A minha geração combateu e venceu esse tempo feito de silêncio e  mordaças. Queríamos tudo aquilo que depois conquistámos. Palmo a palmo. Éramos a favor de alguma coisa e conquistámos pela luta contra, aquilo que queríamos. Eu queria muita coisa. Era a favor de muita coisa. Sobretudo de um país livre onde crescessem os meus filhos, um deles nascido 19 dias antes do 25 de Abril. Escorreram-me as lágrimas ao saber da notícia que a censura tinha terminado. Nada é pior para um escritor do que ver as palavras amputadas pela bota cardada de um polícia qualquer. E queria, e quero, a democracia dos partidos. Organizados com projectos diferentes porque só somos iguais se formos diferentes no pensar e na capacidade de escolher. Defendo que devem existir em toda a geografia política, desde a direita á esquerda. Acredito nessa diversidade que defende a democracia crista, a social democracia, o socialismo, o comunismo, os regimes populares, os animais, a ecologia e por aí fora. Numa palavra: não consigo ser anti-partido, embora seja independente que já votou em diversos partidos ao longo de trinta e oito anos de democracia e que nunca votou antes dela existir porque estava proibido. Era do contra, não tinha direito a escolher.
Reconheço que a evolução dos vários partidos que nos representam encaminhou-os para a crise ideológica e de valores. Que precisam de profundas reformas internas, que urge redescobrirem a democratização, desfazendo clientelas, 'aparelhos' , burocratas, oportunistas que os usam com fins pouco altruístas. E isso vai acontecer mais dia, menos dia. O actual estado de degradação não se mantem por muito mais tempo. Porém, são a forma diversa de nós pensarmos, do nosso direito a escolher, do nosso direito a participar. É exactamente na Assembleia da República que está essa síntese do que o país pensa e, de alguma forma, uma parte de nós, pois que quando votamos, escolhemos, e entregamos a nossa confiança.
Como diria Churchil não será o mais perfeito dos sistemas. Faltam sempre mais escolhas e não existe um único hemiciclo, depois de cada acto eleitoral, que preencha todo os nosso mundo de expectativas. Mas ali mora o que de essencial nós quisémos que morasse. Aqueles deputados são nossos. Representam-nos, embora haja alguns que atraiçoaram a nossa confiança e tornassem vendilhões do nosso templo de esperança. São alguns, não são todos. Existe a mais poderosa das representações populares embora não exista a mais fabulosa das virtudes. São como a sociedade que representam com as mesmas virtudes e os mesmos defeitos. Mas são o corolário de uma Estado que vive dificuldades, é certo, mas que é muito melhor do que o outro onde se viviam piores dificuldades e imperava o medo e a iniquidade. 
É certo que estamos contra. E fazemos bem em ter regressado aos tempos do contra. Porém, assaltar o mais nobre órgão da soberania do Povo, não é um gesto contra. Nem é apenas um gesto anti-partido. É a caminhada trôpega, bronca, ignorante, boçal para um messianismo inglório e decrépito. A favor de um qualquer D. Sebastião que surja no nevoeiro da nossa própria desorientação e, como se sabe, ele não regressou de Álcácer Quibir. Este desbragamento que convida a assaltar a Assembleia da República nem chega a ser contra os partidos. É contra nós próprios, aqueles que mais sofrem, aqueles que mais necessidade têm de ajuda e, ensina a História, que exactamente por esses que os ditadores começam a encher as valas comuns de cadáveres. Precisamos de uma Nova Ambição, é certo. Precisamos de mudar de agulha e de pensar perante os terríveis problemas que nos assolam, precisamos mesmo que os partidos políticos se reconvertam em baluartes da confiança perdida. Mas que tudo isto aconteça não é necessária a fúria dos cegos de ódio e de incompreensão com a vida. Destes apenas sairá mais ódio e mais amargura. Já não têm nada para oferecer a não ser estar contra. O que no caso de se dar o assalto á Assembleia da República, apenas nos mostrarão como se consuma o crime de traição á Pátria. Pode ser que os vinte e cinco anos de prisão que os espera, lhes devolva a humanidade que perderam. E a lucidez suficiente para deixarmos apenas ser do contra e tornarmos a ser os caminhantes do sonho e da esperança.