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segunda-feira, 18 de agosto de 2014

PRENDER O ESPÍRITO SANTO? COMO?


 
Uma Breve Reflexão sobre Investigação Criminal
 
  Levantou-se um clamor exigindo a prisão da família Espírito Santo. Particularmente do líder Ricardo Salgado. Fico espantado com os argumentos utilizados sobretudo por comentadores e analistas económicos e políticos mais aguerridos que tratam estas questões com tanta leviandade, como se bens morais fossem passíveis de prisão quando são violados ou, eventualmente, violados. Percebo essa fome de vingança, uma espécie de luta de classes, onde um poderoso concentra em si próprio as dificuldades de todos aqueles que estão zangados com a crise. E revoltados. E com toda a razão, diga-se. Neste hábito muito português, emotivo, temperamental, e sempre ignorante, precisamos sempre de um culpado e serve sempre aquele que está mais à mão. Ou aquele que surge com mais frequência nas notícias. Há sempre um culpado que sintetiza as culpas e as responsabilidades de muitos e para aí se dirige, e se satisfaz, a fome de justicialismo primário. Só que notícias não passam disso mesmo: notícias. São insuficientes para num Estado de Direito enfiar na cadeia seja quem for.
   Por outro lado, não compreendo que sejam os mesmos comentadores e políticos que ainda não há três meses juravam e cantavam hossanas ao BES e ao seu lider que agora reclamem rápidamente uma prisão. Pelo menos um. Ou dois. A coisa é reinvidicada como se estivessemos na lota a regatear o preço de peixe. 
   Um tonto desvario! 
  A primeira questão que não se vê respondida por quem clama prisão é a seguinte: Qual é o crime? Não existe prisão para actos que estejam excluídos do Direito Penal. Sejam negócios, transacções mais ou menos transparentes, especulativas ou não, sejam acções que valiam vinte e agora valem zero.
  Volto à pergunta: Qual é o crime? Quais são os crimes que podem ser imputados a Ricardo Salgado, à família e administradores? E agora, outra pergunta mais complicada: Como é que se prova a prática desses crimes tendo em conta que qualquer ilícito para merecer uma Acusação e um Julgamento precisa de prova consistente, que não admita dúvidas, para daí sair uma condenação?
 
        A PROVA
 
    Tenho para mim, que nada conheço de operações bancárias - offshores, acções, obrigações, coisas de que ouvimos falar a toda a hora - para além das populares contas à ordem e a prazo, que vai ser uma investigação muito difícil demonstrar a existência de crimes, daqueles a sério, que podem levar um ou mais indivíduos à cadeia. 
Sabe-se que as investigações ditas forenses realizadas pelo Banco de Portugal só há bem pouco tempo começaram a chegar à PJ e ao Ministério Público. Da informação daí recolhida podem, então, as autoridades que tratam de crimes, desenhar uma estratégia de investigação que possam demonstrar a sua existência. E quando digo demonstrar, digo-o pensando no suporte material de prova judiciária que sustente os nexos de causalidade entre criminosos e actos criminosos sem sombra de dúvida.  
Deve dizer-se, desde já, que não são muitos os crimes tipificados para serem descobertos. Embora se tratem de eventuais crimes públicos, a instituição BES seja de utilidade pública, é uma instituição privada. Uma boa parte das infracções económico-financeiras não se aplicam a condutas dos seus responsáveis. Por outro lado, alguns dos possíveis crimes que existam só podem ser demonstrados desde que existam outros a montante que sejam provados. 
E o primeiro desses possíveis crimes é a falsificação de documentos. Balanços e balancetes forjados, intencionalmente sem correspondência real. E sublinho a palavra intencionalmente porque uma conduta criminosa tem que ser forçosamente um acto ou decisão que se desejou, realizada com intenção, para não cair nas derivas jurídico-penais menos gravosas.
Deve dizer-se que, se não me engano, a falsificação de documentos é punivel com pena até três anos. Só por si não admite  prisão preventiva. Porém, a ser provado não atingirá apenas Ricardo Salgado e os seus administradores. Atingirá também quem os sancionou, nomeadamente o Banco de Portugal e a CMVM. Estas instituições poderão ter aprovado (e será mais grave se sabiam e mesmo assim aprovaram) documentos falsos, nomeadamente para o lançamento da última operação de venda de acções. 
     Se se provar a falsificação de documentos, então existem fortes possibilidades de investigar alguns crimes que podem estar a jusante desta infracção penal. Burla Agravada (que pode ir até 8 anos de cadeia), Abuso de Confiança (que poder ter o mesmo limite de pena) Branqueamento de Capitais (até 12 anos) Burla Fiscal agravada (até 5 anos) , Associação Criminosa (até 8 anos embora obrigue a mais de três actores a trabalhar para o mesmo fim) , Gestão Financeira Temerária ( até 8 anos). 
    Provar a falsificação de documentos não significa que se possam provar todos estes crimes. Apenas abre a porta para que a investigação prossiga. É o mais insignificante dos crimes em apreço, porém o mais decisivo para chegar a outros 'voos'.
 
             TERRITORIALIDADE
 
Há uma grande confusão, não sei se deliberada ou não, sobre vários negócios relacionados com esta instituição. Sei, por exemplo, a crer nas notícias, que a célebre empresa Rio Forte é luxemburguesa e o tal Banque Privé é suiço. Havendo crimes nestas empresas, não são da competência das autoridades portuguesas, mas das autoridades judiciais desses países. Para além de troca de informação judicial, não há forma do nosso Ministério Público e a nossa Polícia Judiciária se ocuparem destas investigações sem violar a soberania daqueles países. Perdoem a ironia mas era interessante que os comentadores e políticos de ocasião exigissem a esses países aquilo que exigem ao nosso: Prisão, já! 

             PRISÃO, JÁ!?

    Caso estes crimes se provem, coisa que ainda está muito longe de ser demonstrada, como poderão as autoridades judiciárias prender preventivamente os presumíveis autores? Existem pressupostos obrigatórios para que isso aconteça. São três básicamente.
     O perigo de fuga. Já se percebeu que ninguém fugiu, e se o quisessem fazer a altura melhor seria no mês passado, antes de haver investigações criminais em curso.
     A perturbação da investigação criminal. Não se percebe como pode acontecer, agora que toda a administração está na posse do Banco de Portugal e todos os possíveis suspeitos foram afastados dos cargos onde poderiam criar problemas à actividade judiciária.
     Perigo de perturbação pública. Talvez seja o único pressuposto que pode conduzir a prisões preventivas dado o alarido em torno do caso e turbulência mediática que tem gerado.

CONCLUSÃO: Desconheço por onde irá a investigação. Ignoro o patamar de conhecimento que as autoridades judiciárias têm sobre o caso. Não sei que prova judiciária, repito judiciária, já foi encontrada e sustentada. Que objectivos foram desenhados pela equipa que investiga o caso.  Deixo aqui um modelo de investigação e a certeza que não vale a pena clamar indignações, suplicar prisões, gritar éticas e moralismos de alcova, se, materialmente e juidicialmente, estas demonstrações não forem realizadas. O resto fica bem, até um populismo com verniz erudito, mas não faz história nem produz investigação criminal a sério.