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quarta-feira, 20 de outubro de 2010

PJ Comemora 65 Anos de Vida!

Herdeira das tradições da PIC (Polícia de Investigação Criminal) criada por Sidónio Pais, em 1918, a Polícia Judiciária comemora, dia 20 de Outubro, 65 anos de existência.Uma grande caminhada!E para quem nela viveu intensamente, uma memória repleta de factos e acontecimentos que marcam vidas. Foi o meu caso.Não é apenas a polícia mais prestigiada do país. É, na sua natureza e criação, a institucionalização de um método, um processo de conhecimento que vive a utopia romântica de desvendar, sempre, qualquer crime. Até os chamados 'crimes perfeitos'. Neste dia que rememora a fundação, recordo a minha primeira brigada de furto e assaltos à mão armada: o chefe Lourenço Ferreira, o Pedreiro, o Zé Marques, o Rendeiro, o Guimarães, o Manuel Silva, o Matos e o Óscar. Era a 2ª Brigada da 6ª Secção.
Tinha terminado o estágio.Apresentei-me ao Inspector Cardoso Oliveira (agora chamam-se coordenadores) que me destinou aquela brigada. Tinha sido o primeiro classificado do meu curso e o Director, o dr. Garcia Marques, dera-me a possibilidade de escolher. Escolhi o 'Tarrafal'em vez da 'Venezuela'. É preciso esclarecer que há trinta e tal anos a Venezuela não era governada por Hugo Chavez e era vista como uma nova Terra Prometida. Na PJ, eram as secções do então chamado crime de colarinho branco. A 6ª e a 12ª secções, sempre cheias de gatunos, prostitutas, assaltantes à mão armada, onde se berrava mais e se conversava de menos, onde não se parava nem de dia, nem de noite, era o território oposto - o Tarrafal.
Nesse dia, recordo-me como se fosse hoje, ainda mal tivera tempo para ocupar a minha secretária e arrumar os primeiros papéis, o Marques recebeu um telefonema. Levantou-se com energia, enfiando a pistola no cinto, e perguntou: Quem está disponível para vir comigo? Acabo de saber onde estão dois ladrões que persigo há mais de seis meses.
O Pedreiro veio da outra sala e respondeu:
- Vou contigo. Onde é?
- Na Curraleira.
O chefe Lourenço Ferreira ordenou:
- Levem o puto convosco. Começa logo a aprender como se faz a coisa.
O puto era eu. E fui.
O coração queria saltar-me do peito. Ia participar na minha primeira captura! Viajava no banco detrás.Por mais de uma vez verifiquei discretamente se a minha arma tinha a patilha de segurança aberta, se os cordões dos sapatos estavam bem apertados. Eu explico esta dos cordões dos sapatos. Fazia parte da gíria da PJ. Durante uma operação de risco, se algum de nós, por um ataque de pânico, ficasse para trás ironizava-se sobre a sua valentia dizendo que ficara a atacar os sapatos. E eu jurara sobre a minha vida que jamais ficaria para trás. Confirmava sempre (e aquela foi a primeira vez que o fiz) se os sapatos estavam bem apertados, não fosse dar-se o caso de me embrulhar nos cordões soltos e ninguém acreditar. Transpirava, as palpitações cresciam conforme nos aproximávamos da Curraleira que, diga-se em abono da verdade, não sabia onde era. Confesso que quase me indignava a tranquilidade dos meus colegas mais velhos e que tinham a bondade de me suportar. O Pedreiro fumava e comentava um vinho que o sogro trouxera de Tomar. O Marques confirmava os elogios e procurava uma estação de rádio com música da moda. E eu, nervos esticados, ora olhava para arma ora para os atacadores. De vez em quando dirigiam-me a palavra.
- Com que então, primeiro classificado do curso e vieste parar ao Tarrafal?!
Não tinha palavras para explicar. Eu queria o tarrafal para viver aquela adrenalina que eles pareciam desconhecer, conversando descuidadamente sobre vinhos. Decidi não explicar nada. E ver.
Entrámos no bairro da lata. Serpentinas de ruelas que se cruzavam, ladeadas por barracas feitas de zincos e madeiras. Ouviam-se as crianças a chorar, os sons cruzados das televisões e o cheiro a fritos e cozinhados da hora de almoço.E cheirava mal dos esgotos a céu aberto e pelas ruelas labirinticas dormiam cães com sarna.
O Zé Marques disse-me:
- Vai para as traseiras e se algum fugir, grita!
Ainda ouvi as primeiras pancadas violentas na porta. A tremer de medo e exaltação, arma escondida no bolso, procurei as traseiras. Não havia! A barraca ligava-se a outras barracas, virando á esquerda, á direita, pelo centro, para baixo, para cima, e não havia traseiras! Não conseguia cumprir a ordem e procurava, agora, voltar ao local onde estavam os meus colegas. Os dois contra dois bandidos. E eu não estava lá. E se eles precisassem de mim? E onde é que seria o raio da porta, se as portas eran todas iguais, o cheiro era igual, as falas das mulheres tinham o mesmo som e eu não sabia regressar e a angústia despedaçava-me. E se eles tivessem sido mortos? Ou se os gatunos resistiram? Não ouvi tiros e isso aquietou-me mas logo me inquietou pois descobrira uma terrível evidência: Estava perdido num dos mais perigosos bairros de lata de Lisboa. Agora estava sózinho e era eu quem estava em perigo.De qualquer daquelas portadas semi-abertas poderia sair o disparo fatal e não tinha quem me ajudasse. O coração deixou de bater. Ou batia com tanta força que não o conseguia sentir. O que era estranho no meio da minha confusão é que as pessoas olhavam para mim com estranheza. Apenas estranheza. Ninguém me batia ou me provocava. Olhavam-me. Fazendo um esforço tremendo para ser indiferentes aos olhares procurei orientar-me. Tinha de sair dali, custasse o que custasse. E foi então que ouvi, muito perto, na rua de cima, uma buzina insistente. Galguei a travessa com três ou quatro metros. Eram o Marques e o Pedreiro! Estavam vivos! E tinham dois tipos nas traseiras da viatura.
O Pedreiro fumava tranquilamente encostado à carripana e com um sorriso simpático perguntou:
- Onde é que te meteste?
E eu confessei vencido: Perdi-me. A barraca não tinha traseiras. Prenderam-nos?
Acenou e abriu-me a porta:
- Estão aqui. vamos embora que o almoço está à espera.
Partimos. Nenhum dos dois ligou ao caso. Recomeçaram a conversa sobre vinhos que nem eu, humilhado e exausto, nem os dois presos, taciturnos e cabisbaixos, conseguimos escutar com atenção.
Almocei sózinho. A vergonha era excessiva para enfrentar os meus camaradas. E aprendi duas grandes lições nessa captura frustrada.Fora o primeiro classificado do curso, merecia o reconhecimento por isso, mas era um idiota. O verdadeiro polícia conhece as ruas e os tugúrios da sua cidade como as palmas da sua mão.E, por isso mesmo, decidi que não se passaria um único dia que não percorresse os bairros da lata que, então cercavam Lisboa, para os conhecer milímetro a milímetro. A segunda lição metia adrenalina. Percebi, mais tarde, que prender alguém era sempre um acto sem glória. Aprendi com aquela brigada. A verdadeira adrenalina estava na investigação. Na descoberta. No jogo de indicios e de vestígios, na construção de um caminho que nos levasse do mistério até à verdade. Aí é que estava a exaltação que procurava no 'Tarrafal'. Afinal de contas a utopia maior que deu corpo à PJ. Partir do vazio e caminhar para o absoluto.
Ao longo destes últimos 65 anos, milhares de homens e de mulheres foram actores deste psicodrama. Nem sempre conseguiram fazer de todas as investigações, os êxitos desejados.Muitas vezes ter-se-ão perdido pelas ruas da cidade. Nem sempre a Justiça se cumpriu. Mas não tenho a mínima dúvida, que sem a Polícia Judiciária seríamos mais pobres, mais intranquilos, mais inseguros, mais medrosos dos dias e das noites.Parabéns à PJ! Um abraço à velhinha 6ª-2ª que me ensinou os trilhos da cidade e da vida!

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