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sábado, 25 de fevereiro de 2012

As Horas e os Dias IV


2ª feira - Passei o sábado e o domingo sem sair de casa, repartindo-me  entre a minha Luisa de Gusmão e a série que escrevo para a TVI. O frio acomoda-nos. abrigados, e sabe bem esta relação com a ficção. A realidade é bem mais dura e não admite tantos sonhos. Logo pela manhã, o presidente da junta de freguesia da Gançaria telefona-me para me dar conta que decidiram festejar o carnaval numa jornada de luta contra a extinção da freguesia.Várias dezenas de manifestantes vão almoçar em frente á Câmara Municipal e convida-me para  o almoço de terça feira. Assino as autorizações necessárias e peço perdão aos divertículos - cheira-me que vai ser um contigente de febras e entremeadas. Trabalhamos no Carnaval. Desde que tomei posse, em 2005, que sigo os governos no que respeita a pontes e a feriados. Nunca alinhei no populismo de mais uma ponte aqui, mais uma folga ali. Julgo que neste caso, o governo não foi feliz. O Carnaval tem implicações directas nas escolas, na vida de muitos miúdos e de muitos pais. É uma decisão que deve acompanhar o planeamento do ano lectivo e não cair, como caiu adruptamente sobre nós. Mas cumpriu-se a regra, ainda que grande parte dos funcionários tenha optado por meter férias. O dia passa mole, sem sobressaltos. Os telefones não tocam na vertigem habitual e o dia dá sinais que o frio está de partida. O sol ilumina, quente e doce, o casario de Santarém e os campos que dali, do meu gabinete, se estendem suaves para os lados de Almoster.O correio é pouco. O despacho do dia é irrisório comprado com os dias normais de trabalho. A Alberta Marques Fernandes manda sms. Nessa noite iremos discutir o caso do assassino de Beja que, entretanto, se suicidou. Triste caso, por sinal. Porém, desconfio que a sua morte vai fazer desaparecer as notícias. É como se a auto-punição saciasse a fome de vingança e revolta que virou as atenções para a tragédia ocorrida naquela capital alentejana. Devo confessar que me entristece. Gosto de Beja. Estudei lá. Os meus dois filhos mais velhos nasceram ali. Ainda hoje, tantos depois depois, encontro amigos desses tempos longíquos e a cidade é doce e calma, parece que sorri a quem chega. Não merecia esta atenção macabra.
3ª feira - Desde bem cedo que a população da Gançaria se concentra junto á porta da Câmara. Trazem adereços de outros carnavais, música, boa disposição e luta pela defesa da sua freguesia. Os meus temores confirmam-se. As febras ali estão, gulosas, desafiando qualquer dieta. A situação anormal chama a atenção de curiosos. Recebo a comissão que apresenta a petição contra a reforma administrativa que inclua a extinção da freguesia. Gente cortês, que palpita de emoção em defesa da sua terra, explico-lhe qual é a situação e peço ajuda para que levemos por diante esta reforma. È uma reunião calma, onde se sente a paixão, mas não existe animosidade. A seguir falamos ás dezenas de pessoas que estão no largo. Os braseiros lançam odores perfumados dos petiscos grelhados e o vinho escorre e um presunto infeliz é lascado até ao osso. Refugio-me nele para não sofrer as consequências dos danos da festa em luta ou desta luta em festa. A música aquece, as gargantas começam a desafinar e a cantoria ribomba no edifício. Ás 17.30 desisto de trabalhar. Não há concentração nem atenção que resista ao Carnaval. Vou para casa. Tenho vontade de escrever. Hoje vou terminar um episódio da série. Tenho a história alinhavada desde o fim de semana. Seja a que for, vou terminar.
Terminei ás duas da manhã e julgo que ficou bem.
4ª feira - Recebo um convite para participar num seminário sobre o poder local e a competividade. Pedem a minha presença e não recuso. Angola faz parte da minha memória e tenho curiosidade em ver como cresce aquele país que estreita cada vez mais os laços com Portugal. O dia é marcado por cinco reuniões.Uma delas, bem importante, para desenhar os próximos destinos do QREN. Janto com o deputado Nuno Serra e preparamos, em termos de informações, a Assembleia Municipal que vai decorrer na próxima sexta-feira. E espanto dos espantos!, o Porto leva quatro do Manchester.
5ª feira - É dia de anos. Os meus colaboradores directos quotizaram-se e ofereceram-me um livro sobre a História de Portugal. Sabem das minhas curiosidades e pesquisas em torno de João IV e Luisa de Gusmão e contribuem para o entusiasmo. Vou passar o resto do dia com a minha gente. Quando se chega aos 59 anos, já não precisamos de prendas. Gozamos muito melhor os afectos. E as flores que recebo. Rosas brancas. As flores sempre polvilharam as minhas adesões mais instintivas quer da vista quer do olfacto. Quem me conhece sabe como gosto de flores. A minha prenda preferida. Rezo a S. Francisco para ver crescer e construir-se aqueles que mais amo. Gostava que a morte me desse mais alguns anos de descanso antes de me tocar á porta do coração. Ver crescer filhos e netos dá-nos um apego á vida que nem o maior dos deprendimentos consegue conter.
6ª Feira - Passo o dia a preparar a Assembleia Municipal que começa ás 17.30. Sei que me vão fazer perguntas de algibeira. Exactamente aquelas que dão mote para a retórica e vão deliberadamente escamotear aquilo que é evidente nos problemas da autarquia. É um estranho jogo a que não me adapto. Adivinhar perguntas e reconheço que vulgarmente sou surpreendido. Desta vez acabou cedo. Contra a normalidade. Ainda não são vinte e três horas. Vou dormir. Amanhã vou estar nas comemorações dos 40 anos das Guias de Portugal em Santarém. E depois escrever. O resto do sábado e do domingo. Para apaziguar a alma. 



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