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terça-feira, 28 de setembro de 2010

UMA VISITA INESPERADA

Hoje recebi uma visita surpreendente à hora de almoço. O Isidro. Quem conhece o meio criminal sabe de quem falo. O seu bando, onde pontificavam figuras como o Zé da Parada, o Dragão, o Ata, o Rio Maior, e muitos outros, puseram nos anos 80 Lisboa a ferro e fogo. Dezenas de assaltos à mão armada, homicídios, raptos. A minha brigada prendeu alguns deles.Várias vezes presos, o Isidro acabaria por ser condenado a 25 de anos de cadeia. Saiu há dois meses. Não o reconheci. A prisão provoca mazelas que nunca mais se apagam. A mãe morreu. Está só. E tem 58 anos. Veio pedir-me emprego como motorista. Estava nervoso, inquieto e recordei-me daquela genica irritada e destemida. Tem 58 anos e está velho. E lixado. A vida lixou-o mesmo. Deixou o número de telemóvel e partiu. Se calhar já é tarde para o Isidro. Muito tarde mesmo. Desejo que o seu futuro não seja igual ao passado. As celas são demasiado frias quando os ossos começam a gemer de dor. E fiquei nostálgico. Saudades dos meus antigos camaradas de trabalho e dos desafios de vida e morte. Também já envelheço. Não sei onde pára o Manuel Pedreiro, nem o Guimarães,nem o meu chefe Lourenço Ferreira. Gostaria de rever o Rendeiro e dei por mim a telefonar ao Camacho.  As memórias que o Isidro me trouxe. Tanto frio, tanto sofrimento, tantos anos depois. Deus te guie, Isidro. Que ao menos te dê um punhado de felicidade nunca conseguida.

1 comentário:

  1. Uma visita inesperada... Trouxe me a saudade da palavra, da escrita, dos livros de Francisco Moita Flores. Livros feitos de um tempo que balança entre a realidade e a ficção e nos envolve em histórias de gente com nomes e rostos que afinal quase nos são familiares. Livros de gente nossa, de memórias emprestadas ao tempo da escrita pela mão de quem sente esta gente como sua. Será que o "ranhoso do Isidro" (benfiquista) não morreu? E será que o marido de "Maria Albertina, que Deus Haja", se consumiu muito mais naquela hora pelo desaire desportivo do seu Sporting do que pela traição da sua nua mulher? Quantos Isidros terão trilhado o caminho dos desafios de vida e morte do nosso escritor e dos seus companheiros? Quantas Marias Albertinas terão sobrevivido e chorado as suas lágrimas de confessos pecados em relatórios dactilografados a meio da noite entre celas e ossos que gemiam de dor? Quantas! A vida tem destas coisas... e agora, o Isidro voltou. E com ele, um sinal de perdão, de testemunho de bondade e de fé do nosso escritor... com ele,a confirmação da grandeza de um coração que ainda acredita e que a Deus confia o destino dos que estão em seu redor. Que nunca nunca nos deixemos cegar pelo nosso orgulho, e que desta visita, todos possamos aprender com o exemplo de quem sempre deseja um punhado de felicidade ao próximo. Que Deus o guie, Francisco.

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