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segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Eusébio no Panteão?


Perdoe-se-me a pergunta que assinala esta reflexão. Mas hoje ouvi, no desenrolar do funeral deste nosso ídolo, atleta genial, homem de grandeza superior na sua humildade, desta figura de Portugal e do Mundo uma espécie de movimento desorganizado, embora fervendo de compreensível emoção, que pedia a ida do corpo de Eusébio para o Panteão Nacional. 
Passei a vida a estudar mortos e cemitérios. Conheço perto de quinhentos em todos os continentes e os rituais de evocação e rememoração que a eles estão associados. Conheço vários panteões e memoriais, e com poucas excepções, como é o caso do Panteão de Paris, de Westminster em Londres, ou os memoriais a Lincoln,em Washington, ou a Lénine, em Moscovo, a que acorre muita gente, permitam-me uma sugestão que julgo sensata e históricamente legítima. Não quero com esta sugestão ferir os corações mais amargurados pela perda do nosso Eusébio, nem tão pouco dar uma sarrafada no oportunismo político que parece querer agarrar nesta ideia do Panteão como a última decisão redentora.
Já o escrevi, em vão é certo, quando foi de Amália Rodrigues, querida amiga de quem guardo mutas saudades e memórias doces. Faço-o outra vez, agora, em nome do reconhecimento destes verdadeiros heróis nacionais e que honraram, aqui e pelo mundo, a nossa Pátria.
A tradição portuguesa da estatuária evocativa dos grandes homens é produção da propaganda republicana e teve o seu início em 1880 com o centenário de Camões e, logo, em 1882, a propósito do centenário do Marquês de Pombal. A preocupação das élites republicanas era lembrar o povo através da representação escultural, os grandes homens e os grandes serviços prestados a Portugal. Assim como o seu carácter e exemplaridade cívica, cultural e política. Toda a estatuária que se lhe segue, mesmo durante o Estado Novo, que elegeu outro tipo de heróis como o Infante D. Henrique ou Nuno Álvares Pereira, constituem a mesma marca de imortalidade, de presença incontornável, de modelo a seguir, de exemplo para a comunidade. Não é por acaso, que nestes dias de tristeza, foi exactamente a estátua de Eusébio, junto ao Estádio da Luz, um dos locais mais concorridos para celebrar o genial jogador e convocar a sua memória como uma pertença e uma partilha que não se esfuma com os sinais desagregadores da morte. 
É exactamente nos finais do séc. XIX que aceleram os movimentos de estatuária nos grandes cemitérios românticos. Em Lisboa, já nos finais da primeira República, o vereador Alfredo Guisado levou a efeito uma verdadeira revolução, redimensionando e embelezando o cemitério do Alto de S. João. O mesmo aconteceu com o cemitério dos Prazeres, já em democracia, sob a batuta do vereador Rui Godinho, em edilidades presididas por Jorge Sampaio e João Soares. 
Quem entrar nestes cemitérios, e apenas me reporto a Lisboa porque aqui está sepultado Eusébio, vê-lo-á como espaços monumentais, cruzados por ruas e avenidas, grandes manchas floristicas ou florestais (Prazeres é o maior concentrado de ciprestes da Europa em espaço fechado) e ao longo das avenidas estão depositados os restos mortais de muitos dos grandes heróis da história liberal e republicana. Sebastião Magalhães Lima, José Fontana, Azedo Gneco, Eduardo Cortesão, Bento Jesus Caraça, Sousa Viterbo, o jazigo dos Escritores, Humberto Delgado (Prazeres) assim como Filinto Elísio, José Rodrigues Migueis, Borges Grainha, Ivone Silva, Elias Garcia, Miguel Bombarda, Cândido dos Reis, Machado de Castro, os Mortos do Tarrafal, (Alto de S.João) entre outros, ali se encontram para quem ali entre, e são milhares de portugueses que visitam estes cemitérios, nesta figuras reconheça a sua História, os seus heróis e, sobretudo se reencontre com a memória. Não é por acaso que, mesmo em Paris, onde Moliére foi panteonizado, o seu túmulo continua a existir no Pére Lachaise como muito mais visitas do que os seus restos mortais, enclausurados no Panteão Nacional.
Tivesse a actual câmara de Lisboa alguma sensibilidade humanista, e não apenas política, para o que representa a Morte dos grandes homens e teria seguramente pedido, de imediato, o controlo das exéquias fúnebres e preparado o sepultamento de Eusébio numa destas grandes avenidas cemiteriais, onde ficaria como testemunho do homem que foi e da grandeza que entregou a Portugal e a Lisboa, para que o povo, nos passeios pela sua memória, por ele passasse e homenageasse publicamente como o sempre fez nos grandes estádios cheios de multidões. O mesmo se passaria com Amália. 
É, no meu entender, um erro grosseiro esconder das pessoas que o aclamaram e admiram, os restos mortais de Eusébio. O panteão, particularmente o nosso, não tem os braços abertos á população. É um esconderijo de gente ilustre, é certo, mas que se apaga na memória por ausência de ritos de evocação e da mera constatação acidental, por um funeral, por uma romaria, de que ali está a memória viva de Eusébio.  
Vivemos um tempo em que o ritmo acelerou a tal ponto que diminui rápidamente o tempo do luto, da rememoração, da evocação. Fechar os grandes mortos num Panteão adormecido, tem algo de orgulho e vaidade de peralta, mas não cumpre a regra de presentificação da memória que os grandes espaços sepulturais permitem. Pior ainda, é deixá-lo no cemitério do Lumiar, que embora digno, está ausente desta monumentalidade evocativa que se desprende do Alto de S. João e dos Prazeres. Quem conhece os grandes cemitérios do mundo sabe bem que assim é. Os túmulos de Edith Piaf ou de Jimmy Hendrix são, ainda hoje, locais de romarias diárias no Pére Lachaise. Assim como de tantos outros intelectuais e desportistas que ali e em Montmartre ficaram como sinal de que são pedaços da memória colectiva. O mesmo se passa nas outras capitais do mundo.
Sei que não valerá de nada este meu contributo. Os políticos arreganham-se para se apropriar do palco que esta triste morte lhes deu e o destino vai ser o Panteão ou o esquecimento, se outros heróis o substituirem. Pior do que isso. Amália e Eusébio são símbolos de um povo inteiro, orgulho de uma Pátria que ultrapassam fronteiras cada vez com mais portugueses a trabalhar por esse mundo fora. Não são um produto das élites intelectuais. Eles são élites por qualidades e talentos naturais nos quais milhões de portugueses e cidadãos de todo o mundo reconhecem, admiram e amam e agradecem os legados que nos deixaram.
É a sugestão que vos deixo. Como estudioso deste fenómeno e, sobretudo, como cidadão magoado com a perda de tão extraordinário cidadão que foi Eusébio. Paz à sua Alma!

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