Páginas

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Ao Zé Correia: Com Lágrimas!



Os grandes homens, na maioria dos casos, habitam na invisibilidade dos dias. Conhecessem-se, amam-se, sabemos que a sua presença e vida enriquece cada comunidade, seja escola, seja aldeia, seja vila ou cidade e a sua presença, discreta mas que sabemos estar lá, reforçam o nosso sentimento de segurança e de adoração pela Vida que nos permitiu conhecê-los, com eles conviver e a admirá-los. É o caso de Zé Correia. Fora de Moura e dos seus arredores, talvez haja uma mão cheia de gente que saiba que ele é. Mas lá na nossa terra, ele foi ídolo, foi exemplo, foi pedagogo à sua maneira e, sobretudo, foi um homem bom. Solidário. Ontem, ao confirmar a notícia da sua morte no jornal A Planície, o coração bateu mais devagar, em silêncio e em lágrimas. E sei que ele não gostaria que fizesse aquilo que vou fazer. Demasiado discreto para evocações públicas, demasiado delicado para incomodar alguém com a sua presença. Ou com a sua ausência. Mas é preciso que se saiba que houve um homem chamado José da Cruz Correia e que partiu deixando saudades no coração de muita gente e deixou alguns bem mais pobres porque perderam um velho amigo. Eu sinto-me hoje bem mais pobre, bem mais só, e com uma saudade intensa que só se resolverá quando a memória o recolher no nosso panteão de imortalidade pessoal.
Conheci-o vai para cinquenta anos. Eu era um puto que entrava no 1º ano do ciclo (agora 5º ano)e da vida pouco mais sabia que o nome do primeiro rei de Portugal, os cromos mais importantes da colecção de barcos, o calibre dos melhores berlindes para o jogo dos três covais e, tudo isto, com uma bola de futebol sempre presente. Nesse tempo a televisão dava os primeiros passos e, agora, sei que fiz parte do Cinema Paraíso. Corríamos de cadeira na mão à casa de um amigo para ver o filme da noite, ou acompanhava o meu avô ao café Ideal, em Moura, para ver o Sporting e ás vezes o Benfica. O meu avô António foi meu padrinho de baptismo de sportinguista, e o Ideal foi a minha pia baptismal, que fez de mim devoto dos Leões ao ver a magia do Seminário e do Geo, do Carvalho, do Hilário, do Alexandre Batista e do Zé Carlos. Também foi o Ideal que me apresentou o Eusébio. Ainda menino, vi a final do Benfica contra o Real Madrid. Toda a gente falava do Grosso, do Gento, do Di Stéfano os nomes maiores do futebol da altura e o Benfica era o Zé Águas, o Zé Augusto, o Cavém, o extraordinário Coluna, o Cruz, o Costa Pereira e no meio destes gigantes havia um puto que se chamava Eusébio. Compreendi logo naquela noite, especialista em jogo de carica, que aquele puto tinha um brilho de rei que apagou os brilho de todas as estrelas.
Foi nesse tempo que conheci o Prof. José Correia. Era o responsável pela Educação Física e causa-me estranheza porque jogara pelo Benfica, embora por pouco tempo, e tinha alma de Leão. As suas aulas eram simples e, simultâneamente, totais. Fazíamos exercícios para aquecer, outros tanto para conhecermos o nosso corpo, e mais outros para desenvolver músculos e facilitar o crescimento. Mas ensinava mais. Como se troca a bola ao primeiro toque, as regras do andebol e de outras disciplinas afins e, acima disto tudo, cultivava e educava no respeito pelo outro. A competição como forma de crescer, a delicadeza para os adversários, o prazer dos desprazer da derrota, a alegria simples das vitórias, sublinhando sempre o carácter transitório e efémero dos jogos, das vitórias e das derrotas, e glorificando o valor da amizade, do desportivismo, da são camaradagem. 
Escutava-o com fascínio e bebia as palavras serenas com que nos elogiava ou rectificava os nossos erros. Foi dois anos meu professor e tratava-me por Chico Flores.Depois perdi-o de vista. Ele abandonara o ensino e dedicava-se à actividade bancária. Eu seguira para o Liceu de Beja. Era raro encontrar-mo-nos mas cada encontro era uma festa. Com ele aprendia sempre mais alguma coisa e as suas observações serenas, bem humoradas. Nesse tempo ele era velho e eu era novo. Era velho para os meus olhos de jovem. Talvez tivesse mais vinte anos do que eu. Quando nasceram os meus filhos, percebi a sua verdadeira dimensão humana, o seu carinho pelos mais pequenos, o seu jeito de ensinar. Passavam eles a fase da descoberta dos palavrões e Zé Correia ensinou-lhes os piores. - Se te chamarem isso, respondes que são filhos de um trapézio. Se te chamarem aquilo, responde-lhes que são filhos de uma hipotenusa. E nunca mandem os vossos colegas para o lado que cheira mal. Se vos insultarem, respondem: vai para rectângulo, pá!
Compreendi, ainda melhor esta ternura, quando foi avô e os netos se multiplicaram. Da ternura sem nome, da delicadeza cuidada. E ficam nas memórias mais doces do meu tempo de juventude, os serões quentes na esplanada do Ideal ou, então, no mercado, no café do José do Carmo. Ele, o José das Estevas, o Joaquim Condeça, o Herbert era um grupo de histórias e de boa disposição que confortavam mais que qualquer concurso apresentado pelo meu querido e saudoso amigo Artur Agostinho.
Parti de Moura há perto de quarenta anos. Regressava nas férias, nalgum fim de semana prolongado, e sabia que entre as coisas que voltava a ver, muitas me confortavam no reencontro. O jardim, a igreja do Carmo, as ruas da Mouraria, a Muralha, onde viviam os meus avós, o Ideal e....O Zé Correia. Ele proibira-me de o tratar por professor e eu continuava Chico Maria pois que também o proibi de me tratar por doutor. Ficam como evocação apaixonada as discussões políticas a seguir ao 25 de Abril. O Herbert exaltado e apaixonado, grande resistente à Ditadura, o seu irmão Jaquelino mais empolgado e emotivo, o Zé das Estevas mais curioso, eu á espera da grande revolução popular, e todos à espera que o Atlético de Moura subisse de divisão e as discussões intermináveis aproximavam-nos ainda mais e eram com saudade que dizíamos adeus. 
Houve um tempo em que a Vida foi mais rija do que nós. Separou-nos. Primeiro na PJ, depois investigando por esse mundo fora,em Paris, em Lausanne, na China, na Malásia, na Índia, nas Filipinas, nos Estados Unidos, no Brasil mas eu sabia que eles estavam bem e eles sabiam das minhas saudades. O primeiro grande choque foi a morte da esposa do Zé Correia. Eu acabara de aterrar na Irlanda, para uma palestra, e o meu pai ligou-e a dizer que ela morrera de morte súbita. Nunca lhe disse como foram magoados esses quatro dias que passei em Dublin. A profunda mágoa pelo seu infortúnio que Zé Correia idolatrava a sua esposa. A seguir partiu a minha mãe e foi a última vez que o vi. No funeral onde veio consolar a minha mágoa. mas já estabelecera um ritual que era sempre cumprido. Todos os anos, se estávamos longe, pelo Natal tocava o telefone e era, primeiro a esposa e o Zé, depois só ele, a desejar as boas festas e um bom ano novo. Podíamos estar muito tempo sem nos vermos e o toque repetia-se e o Natal era mais doce porque tinha falado com ele. Em contrapartida, chegavam-lhe ás mãos exemplares das primeiras edições dos meus livros. Fazia questão de lhos entregar a ele e a outros amigos. Há dois anos saiu um livro meu para crianças. As Histórias da Maresia do Mar . Não lho enviei e recebi protesto. Respondi-lhe: Ó Zezinho, isso é livro para putos! Que não. Fazia questão de os ler todos e a honra de os coleccionar. Sei que os coleccionava porque na estante não ficava apenas mais um livro mas um pedaço da nossa amizade nunca desfeita.
Este ano tocaram sininhos a rebate. O telefonema do Zé Correia não chegou e achei tão estranho, eu que vivo longe desse culto infernal de desejar boas festas a quem conhecemos ou mal conhecemos, que não fiquei sossegado.
Chegaram os Reis e o telefonema não veio. E neste momento, como estou a finalizar o meu próximo romance que deve sair em Maio, prometi a mim mesmo que lho ia entregar em mão e dar-lhe um raspanete por não ter telefonado. E já agora, para fazermos as pazes, levar-lhe-ia As Histórias da Maresia do Mar, livro de putos que ele insistia em ler. Um alarme tocou e fiz um telefonema a um amigo que me disse: Eh, pá! Eu não tenho a certeza mas acho que o Zé Correia morreu há uns meses. Fiquei em pânico e contactei A Planície para confirmar ou não esta dura notícia. Confirmaram e senti-me vencido. Cansado. Tão magoado que as lágrimas e o silêncio fizeram acudir a minha filha. 
- O que tens, papá?
- Um dos meus maiores amigos faleceu, minha filha e eu só soube agora. 
Que raio de vida esta que nos afoga nos maiores devaneios e nos faz esquecer a substancia da própria existência? O conhecimento tardio daquele Amigo bom, bondoso, sereno, discreto, inteligente, afectuoso é um golpe que julgava não merecer. Não é vedeta, nenhuma televisão anunciou  a sua morte, nenhum obituário de peso a comunicou e hoje sinto a solidão das partidas que não regressam, esta saudade dura e amargurada, e sinto-me tão pobre, tão vazio, que decidi escrever para os milhares de amigos que me seguem, que perdi um grande amigo e o telefonema de Natal que dava mais luz á quadra que acabámos de viver. E escrevo em sua homenagem porque é preciso que saiba, que em Moura, durante oitenta anos, viveu um homem justo e bom, semeador da amizade e da inteligência e que faz parte da minha galeria de tesouros, pela honra que sempre senti por tê-lo como um Amigo que todos desejaríamos ter. 
Zezinho, no próximo Natal, telefona-me do Céu. Juro-te que antes disso entrego aos teus filhos os dois livros em falta, já que a falta que me fazes, ninguém pode reparar. Um abraço querido amigo. Até sempre. Até sempre!

2 comentários:

  1. Obrigado pelas palavras , muito bonito ! João Correia

    ResponderEliminar
  2. Palavras que emocionam sem qualquer sombra de dúvida. Um notável Homem e uma ainda mais notável e sincera homenagem - a prova de que, por muito longe que andem todos os filhos da Vila de Moura, há qualquer coisa efectivamente grande e inexplicável que nos liga a todos. A prova disso mesmo é que ainda há minutos felicitei um amigo que vive e trabalha do outro lado do Mundo, devido às honras com que foi agraciado, obviamente por merecido mérito. Bem haja Moita Flores! Jorge Santos

    ResponderEliminar